quarta-feira, 30 de março de 2016

A letra escarlate



Se há uma casa em que habita o espírito da História Americana, esta tem como endereço a Monument Street, em Concord... e seu nome é: The Old Manse. Não encontrei viva alma ao caminhar em direção a porta da residência construída em 1770 para o reverendo William Emerson, avô do escritor transcedentalista Ralph Waldo Emerson. O austero casarão ouviu os primeiros tiros da Guerra Revolucionária pela Independência dos Estados Unidos, na Batalha de Concord travada em seus arredores sobre a Velha Ponte Norte. Quantos espíritos cruzam a Old North Bridge, reconstruída para servir de ponte para o passado? Décadas depois, outra revolução seria travada naquele endereço, uma revolução filosófica. Neste endereço, Bronson Alcott (pai de Louisa) se encontrava com Margaret Fuller e Henry David Thoreau, que plantou até um jardim para os novos moradores do local, o escritor americano Nathaniel Hawthorne, que alugou a casa onde Ralph Waldo Emerson escreveu o primeiro rascunho de “Natureza”, um dos pilares do Transcedentalismo. Que formidável local de encontros de notáveis era aquele!

Nathaniel Hawthorne era descendente de John Hathorne, o único juiz que não se arrependeu após o terrível episódio do julgamento das Bruxas de Salem. Nathaniel inseriu um “w” para tentar ocultar essa relação. Talvez essa “culpa” o tenha levado a escrever romances com implicações morais, como “A casa das sete torres” e “A letra escarlate”. Este último trata da história da relação adúltera da jovem Hester Prynne, que resultou no nascimento de uma criança ilegítima, condenando-a a carregar a letra “A” bordada no peito. E quem não imaginaria que essa letra se referia a marca de uma adúltera? Mas a figura de Hester não é vitimizada, pelo contrário, ela se mostra uma mulher forte, capaz de criar sua filha e manter o segredo que a levou a ser marcada com a letra escarlate. Mas se Hawthorne era assombrado pela questão da herança de uma culpa que não era dele, pode-se dizer que sua esposa, a pintora Sophia Peabody, o redimiu com uma vida de contentamento.

Nathaniel e a esposa logo se mudaram para a Old Manse, e viveram felizes naquela casa, até serem despejados por falta de pagamento do aluguel, restando apenas dez dólares em seus bolsos e um bebê no colo. O futuro financeiro seria mais generoso, com o sucesso literário de Hawthorne, que se tornou um dos maiores escritores da América.

A Old Manse estava totalmente fechada, enclausurada em silêncio. Nenhuma janela aberta. Andei ao redor da construção, justamente tentando enxergar a janela na qual o casal registrou um fragmento dessa pequena felicidade a que chamam de matrimônio, riscando algumas palavras no vidro com o diamante do anel de Sophia. Não encontrei as palavras, que, mesmo assim, deveriam estar por ali, gravadas no coração daquela velha casa:

“Os acasos do homem são os propósitos de Deus...
Os menores ramos se inclinam livremente contra o céu...
Composto pela minha esposa e escrito com seu diamante.
Inscrito pelo meu marido ao pôr do sol, 3 de Abril de 1843. Em dourada luz”.


Diante da antiga residência dos Hawthorne, não pude deixar de me lembrar de minha musa (na verdade, não precisava me lembrar, pois dela eu nunca me esquecia). Por ela gastei o dinheiro de uma refeição para comprar um cartão telefônico de uma chinesa em Nova Iorque, apenas para dizer, do outro hemisfério, que eu a sentia ao meu lado... e que a amava. No dedo de minha musa não havia nenhum diamante, e não tínhamos sequer uma janela para escrevermos sobre o nosso amor. Havíamos saído de nossa casinha de fundos, porque o aluguel havia aumentado e não teríamos mais condições de ficar lá. Foi aí que ela voltou para a casa dos pais e eu fui morar com os cinquenta tailandeses e, depois, no asilo. Mas eu tenho certeza de que, assim como os Hawthorne, sair de uma casa não significava perder o lar. Pois o lar é onde nos sentimos bem. E por ter a minha musa sempre morando em meu coração, eu teria o mundo por lar.

Próximo capítulo no dia 06/04/2016: Natureza – Ralph Waldo Emerson.

quarta-feira, 23 de março de 2016

Mulherzinhas


               Por toda Concord senti um ar diferente, como se cada folha morta fosse apenas a página de uma antiga história retornando ao solo, nutrindo novos enredos que vicejavam em cada folha de árvore ao meu redor. O que contaria se ainda estivesse em pé a Árvore de Jethro, um antigo carvalho em cuja sombra aquela terra foi comprada dos índios em 1635, para o nascimento da pequena Concord? Em seu lugar havia outra árvore mais nova, indicada por uma placa que celebrava esse pacto que estabeleceria, como disse Henry James: “O maior pequeno lugar da América”. Aquela localidade nunca passou dos vinte mil habitantes, mas através dos séculos testemunhou fatos que marcaram toda a América, não apenas no campo intelectual, com grandes escritores como Alcott, Hawthorne e os transcendentalistas Emerson e Thoreau, mas também no campo da guerra pela independência dos Estados Unidos contra os ingleses, relembrada a cada esquina.
               E é com menção a outra guerra que Louisa May Alcott  inicia sua obra-prima, com quatro “mulherzinhas” lamentando um Natal sem presentes por conta da Guerra Civil Americana, na qual o pai havia se voluntariado para combater pelo Norte contra os Confederados do Sul. Mas não se trata de um livro de batalhas épicas, mas apenas daquelas travadas no cotidiano de uma família americana do final do século 18 (o tema da feliz família americana, ainda unida ao redor da mesa nos jantares, discutindo amenidades). Louisa, que nasceu em 1832, trouxe muito de sua vida pessoal para seus livros, sobretudo em Mulherzinhas, com os personagens absorvendo caraterísticas de sua própria família. Assim viveram na vida real e na ficção as irmãs Anna (Meg), May (Amy), Elizabeth (Beth) e Louisa sendo a personagem Jo, que tinha o sonho de se tornar escritora (o que conseguiu com louvor na vida real). A forte mãe Abigail inspirou a criação da mãe Marmee, e o pai Amos Bronson, Mr. March. Bronson era professor e filósofo transcendentalista, amigo de Ralph Waldo Emerson, tendo a família também convivido com Thoreau.
               Aliás, os Alcott eram uma família extraordinária. Bronson até ajudou a fundar a comunidade agrária utópica de Fruitlands, baseada em princípios transcendentalistas. Infelizmente (ou felizmente para a literatura), a experiência não teve sucesso, os Alcott vieram morar em Concord, onde Louisa May Alcott escreveria o seu clássico juvenil da literatura americana.

              Confesso que quando cheguei em Concord, eu nunca havia lido uma linha sequer dessa escritora. Além do mais, o título de sua obra mais famosa, Mulherzinhas, tampouco me era atraente. Mesmo assim decidi visitar a Orchard House, onde “Mulherzinhas” foi escrita por Louisa em uma escrivaninha, entre duas janelas, que seu pai construiu especialmente para ela. Afinal, se esse livro estava entre os 88 livros que moldaram a América, algo deveria haver de especial nele, mesmo eu não o tendo lido (o que só fiz depois, de volta ao Brasil, folheando uma edição americana ilustrada por Louis Jambor, da Grosset & Dunlap, datada de 1947 e comprada em um sebo paulistano). O que senti ao ler o livro? Bem...
               O que permaneceu dessa viagem literária ao universo de Alcott foi aquela tarde em Concord, diante de uma casa de madeira escurecida, com um pequeno caminho que levava a uma porta verde. Não foi pela leitura do livro que eu compreendi o motivo de “Mulherzinhas” ter se tornado uma obra tão importante. A resposta foi dada por duas mulheres de meia-idade, que contemplei diante da casa dos Alcott. Seriam irmãs? Ambas vislumbravam algo que parecia ir além de uma simples residência, como se aquelas escuras paredes, ao invés de limitarem espaços, expandissem e iluminassem lembranças de tal forma que todo o sentimento delas parecia ter habitado aquele endereço, desde sempre.  
               Vi claramente dois sorrisos desabrochando, como se as mulheres estivessem voltando para casa depois de um longo, longo tempo. E acredito que tenha sido isso mesmo o que eu testemunhei naquela tarde, na Orchard House. Aquelas mulheres, e posso apenas supor, devem ter se encantado com a leitura de “Mulherzinhas” em uma época de inocência e castelos no ar. Sendo assim, de alguma forma, moraram naquela casa durante a infância ou juventude. E quando elas se lançaram um olhar cúmplice de compreensão, de quem teve o prazer de conviver com as pequenas aventuras cotidianas de Jo, Meg, Amy e Beth, eu compreendi a importância daquela obra.
               Eis a beleza de um livro. Ele não precisa conter a grandiosa sabedoria filosófica dos transcedentalistas ou o heroísmo dos que lutaram pela independência de um país por aquelas terras. Ele só precisa conter algo que Louisa soube muito bem colocar em seu livro, que, apesar de fictício em grande parte, tinha a essencial verdade no diminutivo: as mulherzinhas, que sonharam, lutaram e conquistaram pequenas coisas em seu dia a dia e que, no final, revelaram a possibilidade de viver a mais simples e delicada das ambições humanas: a felicidade de uma vida em família.
              
 
Do túmulo de Jack e do local da cabana de Thoreau, recolhi folhas secas, mas da casa de Louisa, colhi uma flor.

 Próximo capítulo no dia 30/03/2016: A letra escarlate - Nathaniel Hawthorne. 


quarta-feira, 16 de março de 2016

Walden

Lowell-Boston-Nova Iorque

               Pretendia tomar um banho de gato na pia do banheiro da estação de Lowell, mas descobri que eu tinha esquecido a sacola com minhas cuecas e meias, no Brasil. A princípio ponderei que uma cueca e um par de meias seriam suficientes para duas semanas. Mas lembrei-me de que havia passado por um Outlet de Fábrica no caminho para a estação. Talvez meu bolso pudesse se dar ao luxo de comprar algumas peças baratas. Enquanto caminhava por pilhas de roupas defeituosas, achei graça em me lembrar que eu não fazia aquilo há anos: comprar roupas pra mim. Tudo o que eu vestia eu tinha ganhado, desde o tênis presenteado pela minha musa até o boné falsificado, presente de Mr. Tom, o tailandês, que o arrancou da própria cabeça e o pôs na minha antes de voltar para seus negócios na Tailândia. Fui embora de Lowell orgulhoso da minha cueca nova, paga com poesia.
               Voltei para Boston no anoitecer, de onde tomaria o trem para Concord. Sem ter onde dormir, tive a estranha ideia de ir para Nova Iorque e depois voltar para Boston, só para dormir no trajeto de ônibus. Afinal, os ônibus da Greyhound seriam meus pelo tempo que eu estivesse na América. Foi o que fiz. Além disso, onde mais eu poderia jantar dois pedaços de pizza e uma latinha de coca-cola por apenas dois dólares e setenta e cinco centavos, senão na espelunca dos indianos ao lado da rodoviária nova-iorquina? Um jogava queijo na massa e punha o círculo no forno, o outro tirava, cortava e jogava triângulos em pratos de papel que voavam nas mãos dos clientes, tudo em uma velocidade absurda. Deixei os irmãos indianos alimentando a noite e fui bater perna pela cidade que não dorme.


Concord

               O tempo na estrada é estranho, fechei os olhos em Nova Iorque e os abri em Boston, como se nunca tivesse saído de lá. Peguei o trem para Concord e não muito tempo depois eu já avistava Walden Pond, o lugar em que Thoreau construiu sua cabana para viver da natureza e para ela. Minha vontade era de saltar do trem em movimento e mergulhar nas águas daquela laguna histórica, mas me contive e vi as árvores se afastando até surgirem algumas ruas e o trem encostar na pequena estação de Concord. Teria que caminhar de volta, mas isso não foi difícil. Andei pela Thoreau Street, relembrando as palavras de Thoreau em seu livro “Andar a pé’:

               “Nossas expedições não passam de giros e regressamos à noitinha para o pé da velha lareira da qual nos apartáramos. Metade da jornada é para trilhar os caminhos já percorridos. Devíamos, andando menos, percorrer maior distância, e talvez, no espírito imortal da aventura, nunca mais regressarmos, preparados para devolver os nossos corações embalsamados, como relíquias aos nossos desolados domínios. Se estais pronto para deixar pai e mãe, irmão e irmã, esposa e filho, e amigos, e a nunca mais vê-los – se haveis saldado vossas dívidas, feito vosso testamento, deixado em ordem os negócios e se sois um homem livre, então estais pronto para uma caminhada”.

                E que caminhada seria! Mas eu ainda não era um homem tão livre assim. E, para ser sincero, não sei se gostaria dessa liberdade. Já havia tentado antes, deixar tudo para trás, mas o irresistível elo do amor familiar mudava sempre a direção da minha bússola, sempre me conduzindo de volta ao pé da velha lareira. Mas se o próprio Thoreau afirmou que só tinha conhecido em sua vida apenas uma ou duas pessoas que conheciam de fato a arte de andar a pé, eu poderia me contentar em ser destes andarilhos de temporada, que caem na estrada de vez em quando, como naquele instante, no caminho que levava o nome de Thoreau.



               Ao chegar na Reserva Walden Pond, entrei ávido para me embrenhar pelo bosque. Tive que parar um pouco para respirar. Não porque eu tivesse perdido o fôlego, mas era para me lembrar de que eu deveria estar consciente de cada passo, como se a caminhada fosse uma meditação em movimento. Foi assim que comecei a ouvir o som da floresta, os mínimos insetos amplificando a vida, o cheiro de natureza, os pelos da pele se eriçando com a brisa tépida, o abraço de cada elemento, como se eu pudesse me tornar parte de tudo aquilo que me cercava. Só então, finalmente, eu cheguei ao lar de Thoreau.



               Margeei lentamente a lagoa, como se cada passo fosse uma folha se desprendendo em um tranquilo outono. Não sei quanto tempo levou para que eu chegasse ao local onde Thoreau ergueu sua cabana, vivendo na mata por dois anos, dois meses e dois dias. Alguém poderia perguntar: por que alguém proclamaria simbolicamente a independência pessoal (no dia 4 de julho de 1845) se afastando da sociedade para viver sozinho no mato em uma cabana de seis metros quadrados? A resposta seria dada no livro “Walden”, que ele escreveu após essa experiência de “vida nos bosques”. E a resposta não poderia ser mais verdadeira:

            “Fui para a mata porque queria viver deliberadamente, enfrentar apenas os fatos essenciais da vida e ver se não poderia aprender o que ela tinha a ensinar, em vez de, vindo a morrer, descobrir que não tinha vivido”.


            Após a solitária caminhada, deitei-me sobre as folhas caídas sobre o solo da fundação da cabana de Thoreau. O estalar das árvores ao vento, a consciência das folhas... Senti-me tão em casa ali, que fui me banhar no lago. Nu, senti a água gelada aquecer a minha alma. Foi mais do que um banho, foi como um rito de batismo. Sentia-me tão livre, tão em comunhão com a natureza, um Adão moderno sem... Ouvi passos, mas não tive tempo de cobrir meus pudores. Uma mulher que caminhava por ali também testemunhou o meu rito de liberdade. Mas creio que ela não compreendeu assim, pois saiu em disparada, correndo pelas trilhas e sumindo no bosque.



            Restava me enxugar e encerrar o banho. Caminhando pela margem do lago, encontrei uma placa de “Proibido Nadar”. Talvez aquele fosse o motivo do espanto daquela senhora que me flagrou em delito. Não pude conter o meu sorriso. Afinal, eu estava seguindo os preceitos defendidos por Thoreau em seu livro “A Desobediência Civil”. Obra que ele escreveu após ter sido preso por se recusar a pagar impostos, porque estes financiavam a guerra contra o México. Um ensaio que inspirou Mahatma Gandhi em sua luta pela independência da Índia usando a “não violência”, além de Martin Luther King, Tolstói e até os hippies! Tudo isso tornou minha experiência nas águas de Walden ainda mais mística.
            Porém, logo em seguida encontrei outro aviso, um alerta:
            “Atenção visitantes do parque: Em meses recentes, nós temos recebido notícias de um indivíduo se expondo aos frequentadores... Se você encontrar essa pessoa, por favor, não o confronte... informe o incidente imediatamente, ligando para 911 ou o Departamento de Polícia de Concord...”




            Estranhamente, esse segundo aviso não me deixou muito a vontade. Achei por bem me embrenhar novamente pelo mato para fugir um pouco do contato com outras pessoas. Assim caminhei atravessando o campo onde Thoreau cultivou feijões para sua subsistência até sair por um acesso secundário, retornando à Rua Walden e, logo em seguida, a Rua Thoreau... E então, de volta à civilização, à sociedade... Só que me sentindo um pouco diferente, pois ainda mantinha um resquício de natureza entre os dentes, em um sorriso de quem viveu a liberdade de Walden, mesmo que por apenas algumas breves brisas de outono...
             

Próximo capítulo no dia 23/03/2016: Mulherzinhas – Louisa May Alcott.

quarta-feira, 9 de março de 2016

On the road

Nova York
              
               Vi o meu primeiro dia na América morrer na estrada. Meia-noite e os faróis dos carros no sentido oposto tentavam me cegar. Mas eu ainda conseguia vislumbrar um carro de luzes apagadas, carregando dois amigos, Dean Moriarty e Sal Paradise, e sua trupe de loucos a caminho de Nova York após alguma jornada sem sentido, de volta àquela cidade que os aprisionava apenas para soltá-los novamente, como pássaros de asas feridas, rumo ao oeste.
               Cheguei à Port Authority de madrugada sem ter pregado o olho. A gigantesca rodoviária parecia um velho que agonizava, mas que acreditava que nunca morreria. Pelos corredores, tristes famílias de imigrantes (e quem não é imigrante nesta terra ou em qualquer outra?) arrastavam suas malas de coisas inúteis, vez ou outra, uma mãe de cem quilos deixava um filho esquelético sentado em cima delas, apenas para que ninguém roubasse a sua miséria. E alguns mendigos cantavam algo sobre a noite e de como a música não podia parar. Fui ao banheiro e alguém soltava palavras de amor na privada, conversando ao celular com uma namorada que por um bom motivo não estava ali. Intimidade versus privacidade.
               Não havia o que fazer a não ser esperar o meu ônibus para Boston. E eu não estava ali, no coração da América, para esperar. Arrastei minha mochila para fora, cuspido pelo velho terminal, e ganhei as ruas. Atraído pelas luzes e pela multidão caminhei até a Times Square. Ali senti o peso da solidão, como se uma imensa esfera caísse sobre mim, indicando que mais um ano havia se passado em vão. Não queria ter que carregar isso pelo resto da viagem. De todas as coisas que um homem pode carregar, a solidão com certeza é das mais pesadas. E não falo da solidão dos viúvos e dos órfãos ou daqueles jovens que pensam que a dor da perda do primeiro amor será a última, sem saber que a perda é algo que se arrasta pelo resto da vida. Falo da solidão de estar triste consigo mesmo, de pensar que não há motivo para estar ali ou em qualquer outro lugar, que não há razão de existir. Não, eu não podia baixar a cabeça logo no início da minha peregrinação. Levantei o olhar e encontrei os arcos dourados de uma lanchonete. Foi então que eu percebi que aquilo que eu sentia era apenas fome. Comi e voltei a sorrir. Como a felicidade pode ser tão simples assim? Apenas um estômago cheio.



               Antes que a sede viesse me atormentar em algum ponto da América, comprei uma garrafinha de água. Depois, bastava encher a garrafa em qualquer torneira e eu nunca mais precisaria pagar por ela. E esse pensamento me animou ainda mais.
               Perambulei pelas ruas de Nova York, sabendo que ela nunca me aceitaria. Havia uma infinidade de lugares que eu poderia ir, antecipando minha peregrinação a outros escritores. Mas eu tinha que manter o foco em Jack Kerouac. Pela madrugada, à medida em que as pessoas foram sumindo, me esquivei dos seres fictícios de outros autores. Ainda não era hora de encontrar Holden Caulfield, por exemplo. Sim, eu poderia ter ido ao The White Horse Tavern, na 567 Hudson Street. Mas não queria gastar meu dinheiro com bebida em uma taverna, mesmo sabendo que Jack se embriagou diversas vezes lá. Um peregrino enche a cara? Talvez eu devesse ir a Saint Patrick’s Cathedral, na Quinta Avenida. Mas de noite, eu veria os vitrais? As visões de Cody? Eu já havia rezado nessa catedral em minha primeira vez em Nova York e nada aconteceu. Sei que é absurdo esperar algo de uma conversa com Deus, principalmente quando o que você diz não faz sentido algum. Então, eu simplesmente voltei para o terminal de ônibus e caí fora daquela cidade, sem prece e sóbrio.


Boston - Lowell

               Amanheci em Boston. Eu tinha que tomar cuidado com aquela cidade também, porque por aquelas ruas havia muitas pegadas de escritores. Se eu seguisse algum rastro por ali, poderia ficar por dias naquela Festa do Chá, em um lugar onde as páginas da literatura inglesa começaram a ser viradas, para que a literatura norte-americana pudesse ser escrita.
               Na North Station embarquei em um trem para Lowell. Ao sair da pequena estação, olhei para ambos os lados. Para um lado, o túmulo de Jack. Para o outro, a casa onde ele nasceu. Será que quando Jean-Louis Lebris de Kerouac nasceu naquela pequena cidade de Lowell, Massachusetts, no dia 12 de março de 1922, as estradas já sabiam que ele as conquistaria? Quem era aquele bebê, filho de canadenses de uma cidade de nome tão poético quanto Saint-Hubert-de-Rivière-du-Loup? Não, ele ainda não era Jack. Muito mais do que apenas nascer, Jack tinha consciência da morte de uma forma tão intensa, que ele sabia que entre o nascimento e a morte deveria haver algo, não apenas um espaço vazio, um vácuo, um sopro. Com o ranger do trem que partia às costas, ouvi a voz de Jack arranhando meus ouvidos: “I am writing this book because we´re all going to die”. “Estou escrevendo este livro porque todos nós iremos morrer – Na solidão da minha própria vida, meu pai morto, meu irmão morto...”. Não havia dúvida. Para visitar Jack era preciso inverter a mão da estrada da vida. Primeiro a morte, depois o resto. E que resto!
               Passei por baixo da enferrujada ponte férrea, e uma placa manchada suspirava: “Welcome do Prince Spaghettiville”. Aqueles eram os domínios de uma das maiores fábricas de massa do país. Mas o convite era eco do passado. A refeição já havia sido servida e não havia mais nada na mesa. Em outra placa, um aviso de que a polícia estava de olho. E no número 105 pixado com spray branco um papel colado alertava: “Área contaminada”. Logo avistei ao meu lado o cemitério de St. Patrick e sua placa que indicava que aquele cemitério havia nascido em 1832. Pela grade vi uma pequena lápide no chão que indicava o túmulo de um tal de J. F. Kennedy. Apenas isso, um nome. Não dizia “Presidente dos Estados Unidos”, nem “Pai amoroso” ou qualquer outra coisa. Apenas uma lápide de pedra com duas iniciais e um sobrenome. Isso porque o Kennedy famoso está enterrado em Arlington, ao lado de uma “chama eterna”. Mas, no final, o que significa a morte, senão a igualdade eterna? Aquele JFK e o outro JFK, que diferença fazia? Adiante havia um túmulo de Stephen H. King. Apenas uma única letra muda tudo? Se ao invés de um H, tivéssemos um E? Por que encontrar o túmulo de Jack Kerouac era importante? Não era. E por isso mesmo eu queria ir lá. Porque as coisas aparentemente importantes nesta vida, no final, não valem nada mais do que letras em um túmulo. Jack não havia cruzado a América porque isso era importante. Apenas fez isso porque quis.
               Ao lado do St. Patrick estava o cemitério Edson. Espalhafatosos gansos pastavam por entre as lápides, defecando sobre os sóbrios túmulos. Ao longe, uma garrafa brilhava. Segui o brilho e lá estava a palavra que eu procurava: Kerouac. Havia um bilhete de agradecimento, junto com um cartão do “Six Ft. Swells Press – After hours poetry” debaixo da garrafa, que àquela altura já estava vazia. Aquela garrafa não deixava de ser uma piada, considerando-se que Kerouac morreu de cirrose hepática aos 47 anos. Sentei-me ao lado de Jack, sentindo-me um idiota por ter ido até ali, assim como era idiota a ideia de deixar um bilhete para um morto ou promover um porre em sua homenagem. Mas, que diabos. Eu já estava lá mesmo. Não, não ia tomar um porre, só deixaria um bilhete: Thanks, Jack. I´m on the road. Senti que aquelas palavras eram ainda mais estúpidas, diante de tudo o que Kerouac havia me dado em um momento da minha vida em que eu mesmo abandonei tudo pra pegar a estrada. Mas, foi esse o meu único gesto de agradecimento. Não houve prece.




               — Tendo uma conversinha com o velho Jack?
               Um velho parou na sombra de uma árvore próxima, talvez acostumado a ver aquela cena: um cara crescido com cara de bobo sentado ao lado de um túmulo.
               — Eu não saberia o que dizer a ele – respondi.
               — Então, não diga nada. Só escute.
               Por mais estúpida que fosse a pergunta, eu tive que confirmar:
               — Quem?
               O velho sorriu e foi embora. E eu devo confessar que tentei escutar alguma coisa além daquele vento que assobiava no gargalo da garrafa. MAR. 12, 1922. Olhei para a outra ponta: OCT. 21, 1969.  Logo abaixo estava escrito: “Ele honrou a vida”. Era isso o que eu precisava ouvir. Era hora de caminhar e ver a casa de Ti Jean, como estava escrito acima do nome de Kerouac. Nada de Jack em seu túmulo, apenas um homem de sobrenome Kerouac casado com Stella...  e o pequeno Ti Jean, ele próprio quando criança, porque um homem de verdade quando morre leva consigo os sonhos de infância.
               Caminhei de volta, no sentido que me levaria à casa onde Ti Jean havia nascido, na Lupine Road, número 9. As ruas de Lowell tentavam falar comigo, mas eu ainda não conseguia escutar o que elas queriam me dizer. Apenas segui em direção ao Rio Merrimack. E que visão eu tive das águas fluindo debaixo da ponte de metal avermelhado. O que teria sentido o menino Jean diante daquele poderoso rio? O mesmo rio que trazia velhas histórias e que havia destruído a loja do pai em uma inundação.
               Do outro lado do rio, as ruas se acalmaram sob o sutil véu do silêncio.
               Lá estava a casa, onde Leo e Gabrielle e seus dois primeiros filhos, Gerard and Caroline, moravam quando o pequeno Jean nasceu ali às cinco horas da tarde de um domingo. Entre dois sorridentes bonecos de pano havia uma discreta placa que indicava: Jack Kerouac Birthplace. Vasos de flores a a bandeira americana tremulando...



               Naquele quarteirão, a família ainda morou na Rua Burnaby 35, e depois na casa 34 da rua Beaulieu. Desde criança o pequeno Keroauc nunca morou mais do que quatro anos na mesma casa, antecipando a sua vida errante quando adulto. Eu poderia dar alguns poucos passos até a segunda casa de Jack e depois mais outros tantos, todos do mesmo lado do rio, tudo tão próximo, assim como a escola na qual ele e seu irmão estudaram. O irmão quase nunca ia à escola. Doente, morreu aos nove anos. E assim Jack escreveu em seu livro “Visões de Gerard” que “ as freiras da St. Louis de France Parochial School estavam ao lado da cama prestando atenção às últimas palavras dele porque tinham ouvido as impressionantes revelações celestiais que ele tinha feito”. Eu poderia ter ido até o local do funeral na igreja ali perto, décadas depois. Mas para quê? O que eu queria ouvir daquelas ruas, que vivenciaram a vidinha de dois pequenos irmãos era apenas aquela conversa das visões de Gerard:
               “O céu é todo branco”.
               “Os anjos são como cordeiros, e as crianças e os pais ficam juntos para sempre” dizia ele.
               E eu: “Sont-ils content? Eles são felizes?”
               “Não poderiam ser outra coisa senão felizes”.
               Era por aquela conversa que eu estava sentado na sarjeta diante de uma casa de vasos floridos, em que o pequeno Ti Jean nasceu para viver apenas quatro de seus anos loucos com o santo Gerard, cuja lembrança mais real foi um tapa que ele deu em seu rostinho de inocência. Um tapa que todos nós deveriamos levar, pois esse é o verdadeiro nascimento, quando finalmente tomamos consciência de que a dor existe e que a morte pode levar até os anjos.
               E são felizes? Era essa a questão deste lado do rio Merrimack. Não arredei pé dali, do lugar onde Jack nasceu, pois das outras casas eu não quis ouvir mais nada. Não quis visitar a “Sad Beaulieu”, onde Gerard morreu. E são felizes? A única questão que importa deste lado do rio...

***
              





               Minha peregrinação por Jack não havia se encerrado ali em Lowell. Por toda a América eu veria os seus passos, sua sombra pedindo carona no esgueirar de uma tarde que morre no oeste. Mas havia outros a quem eu precisava visitar. Assim, no meio da ponte sobre o Rio Merrimack, joguei o olhar para o longo curso rio acima. Por aquele rio, Henry David Thoreau viajou com seu irmão John, que morreu de tétano... Thoreau escreveu um livro sobre essa jornada, “Uma semana nos rios Concord e Merrimack”, talvez como um tributo ao seu irmão. A vida parece uma eterna busca em memória de algum irmão que perdemos ao longo do caminho. Pensei em meu irmão Felipe. E segui para Concord.
              


Próximo capítulo no dia 16/03/2016: Walden – inspirado pelo livro de David Henry Thoreau...

quarta-feira, 2 de março de 2016

Os livros que moldaram a América

 
             Quase dez anos depois, com o meu visto americano prestes a expirar, eu voltava aos Estados Unidos. Da última vez eu havia cruzado a fronteira do México sem deixar o meu cartão de registro de saída. Será que o sistema acusaria essa minha falta burocrática? O oficial de imigração perguntou:
               — Qual o motivo de sua viagem?
               O que eu poderia dizer, senão a verdade?
               — Uma peregrinação literária.
               Pensei que ele fosse ficar curioso com a minha resposta, mas ele sequer levantou o olhar, mantendo-se ocupado com o meu passaporte. Senti que devia explicar:
               — Vim visitar os grandes escritores da América: Jack London, J. D. Salinger, Herman Melville, Hemingway...
               Imaginei que o oficial fosse dizer: “você sabe que eles estão todos mortos, não é?”. Mas ele me interrompeu apenas para perguntar:
               — Com quais recursos você está custeando a sua viagem?
               Sem pensar por um só segundo, respondi:
               — Com poesia.
               Desta vez, o oficial levantou levemente o olhar na minha direção. Mas eu não precisei explicar que havia ganhado minha passagem para Washington da Universidade de Fortaleza, como prêmio pelo meu livro “cem pequenas poesias do dia a dia”. Não precisei dizer que escrevi esse livro em uma ala desativada de um asilo de propriedade da família do tataraneto do Barão de Mauá (será que estudavam história do Brasil por lá?), nem que acabei ali após viver com 50 tailandeses em um sítio em Jundiaí. Não precisei dizer que, com outro poema premiado em concurso literário, recebi o equivalente a 500 dólares da Universidade de São João del-Rey, que seriam o suficiente (rezava eu) para me manter nas próximas duas semanas. Não precisei dizer que minha vida não fazia muito sentido, que às vezes era absurda, mas que, mesmo assim, eu vivia com a verdade no coração. Oficiais de imigração são treinados para discernir a mentira e a verdade. Talvez por isso ele não tenha feito mais perguntas. Apenas disse, ao carimbar o meu passaporte:
               — Bem-vindo aos Estados Unidos da América.





***



Washington D.C.

               Quando embarquei no Brasil abandonei a primavera. Enquanto via o desabrochar das pequenas luzes na latina imensidão derramada pela terra, a primavera estava apenas começando no hemisfério sul. Quando pisei nas terras do norte, era o dia 22 de setembro de 2012. O primeiro dia de outono. Quem trocaria a primavera pelo outono? Alguém como eu, peregrino das folhas caídas.
               Sim, minha viagem começava com uma metáfora. Eu estava nos Estados Unidos para caçar escritores mortos, para sentir seus espíritos gemendo em minha própria alma, para resgatar as folhas caídas de suas obras, sopradas pelos ventos literários até a soleira da minha casa. Se um dia eu quis me tornar um escritor, foi por causa daquelas folhas amareladas de livros mofados, dos sebos, das ruas, que caíram em minhas mãos, em preguiçosas tardes em que eu sonhava em estar em qualquer outro lugar. Minha única passagem possível naqueles dias eram os livros... Mas isso havia mudado. Eu estava ali, na terra que nos deu Hemingway, Jack London e Kerouac, Poe, Thoreau, Melville, Salinger... E eu leria cada um deles, nas folhas caídas em seus túmulos, casas ou qualquer outro lugar que indicasse: o escritor esteve aqui, ele não foi apenas uma ficção. Verdade. Era essa a minha busca. Por isso não era apenas uma viagem. Era uma peregrinação.
               Saí do aeroporto e peguei o metrô até a estação da Greyhound. Comprei uma passagem para toda a América: um Discovery Pass. Em mais alguns dias, aquele passe seria descontinuado pela Greyhound. Fui um dos últimos a obter aquele bilhete mágico, que permitia que eu embarcasse em qualquer um dos milhares de ônibus da Greyhound que cruzavam todos os cantos daquela terra de quase dez milhões de quilômetros quadrados. O passe de quinze dias custou 360 dólares. Como eu tinha 500 dólares, sobraram 140 dólares para gastar com comida e acomodação, o que dava exatamente dez dólares por dia pelos próximos 14 que eu tinha na América. Como já tinha gastado US$ 3,05 com o bilhete do metrô até ali, em um dos dias eu teria que sobreviver com US$ 6,95. Sendo o alimento essencial, cortei o supérfluo: acomodação. Para quê uma cama? Meu leito seria a estrada.
               Com a mochila nas costas, caminhei até a Biblioteca do Congresso, a maior biblioteca do mundo, com seus mais de 162 milhões de itens em cerca de 470 idiomas distribuídos em 1348 quilômetros de prateleiras. Por coincidência ou não, estava sendo realizada uma exposição intitulada: “Books that shaped America”. 

Ali começava de fato a minha peregrinação. Estavam expostos 88 livros que, muito mais do que moldar a América, moldaram as vidas de milhares de pessoas. Afinal, quem nunca ouviu falar em Moby Dick? Quem não sonhou em pegar a estrada depois de ler “On the road”? Ou caminhar pela estrada de tijolos amarelos até o Mágico de Oz? Lá estavam os livros que deram coração ao homem, que seria somente de lata sem os vívidos batimentos da literatura.        
               Mesmo estando em um paraíso de livros, eu não podia continuar ali, porque a minha peregrinação era outra. Eu leria muitos daqueles livros que moldaram a América, mas de uma forma diferente. Eu não estava naquela viagem para tocar os livros de papel, mas para ver onde eles nasceram, sentir as árvores das quais brotaram, com o vento as folheando com a avidez de quem lê o mundo. 
               Mas ainda assim passei pelo Capitólio, por mera formalidade turística. O prédio do congresso americano não deixa de ser uma atração obrigatória para quem está em Washington, mesmo não sendo o foco de minha viagem. Senti-me realmente como um turista no National Statuary Collection, local para o qual cada um dos estados americanos envia a estátua de um filho notável de sua terra. Não pude deixar de perceber a ausência de escritores. Aliás, não era de se estranhar que a maioria das estátuas ali fosse de políticos ou militares. Afinal, estávamos no prédio do Congresso. Não era o lugar para um peregrino literário. Foi então que ouvi o guia do tour gratuito apontar para a estátua de John Gorrie, o inventor do sistema de refrigeração e “pai” do ar-condicionado. O guia fez piada: “não à toa essa estátua foi enviada pela Flórida, que não sobreviveria sem o ar-condicionado”. Definitivamente, não era lugar para um peregrino.
               Decidi focar em minha missão literária. Mas, já fora da coleção de estátuas, encontrei uma que me chamou a atenção no saguão de visitantes. Era a estátua de Jack Swigert, vestindo um traje espacial. Ele foi um dos membros da incrível Missão Apollo 13...
               Em pouco tempo, eu já havia embarcado em mais uma distração: o National Air and Space Museum. Eu já havia visto o traje do primeiro homem no espaço, o cosmonauta Yuri Gagarin, em Moscou. Eu não poderia deixar de ver o traje espacial do primeiro astronauta a pisar na Lua, Neil Armstrong. Mas até chegar a este item do museu, passei por vários aviões, incluindo um Mitsubishi A6M5 Zero, do mesmo modelo utilizado no ataque a Pearl Harbour e depois em ataques kamikazes. No mesmo museu estava o bombardeiro B-29, Enola Gay, que no dia 6 de agosto de 1945 se tornou o primeiro avião a lançar uma bomba atômica. Era triste ver como a história da aviação estava ligada à guerra.
           Enfim, cheguei à ala do museu dedicada à Missão Apollo 11. Mas ao invés do traje espacial de Neil Armstrong, havia uma placa que dizia que a mesma tinha sido retirada da exibição, para manutenção. Tive que me contentar com o traje de Buzz (ou seria o de Collins?). Mas o que importava isso? Acho que ver o traje de Armstrong seria como ler a 1.ª edição de um livro que conta a incrível história de uma missão que alcançou a Lua. O de Buzz seria ler a 2.ª edição e o de Collins a 3.ª edição do mesmo livro. Mas nada disso poderia se comparar a estar dentro do livro, tocar o seu conteúdo. Afinal, não era para isso que eu havia viajado até a América? Pois era isso o que eu ia fazer. Eu não me contentaria a ficar contemplando a lua com trajes alheios. Eu ia tocar a Lua. Ou, ao menos, um pedaço dela.
               No saguão do museu os visitantes têm a oportunidade de tocar em um pequeno pedaço de pedra lunar... E foi isso o que eu fiz, antes de abandonar as distrações. E elas eram muitas! Ora, eu estava no National Mall, um longo corredor de atrações, onde o Instituto Smithsoniano mantém alguns dos melhores museus do mundo e, mais importante para quem tinha o bolso limitado, gratuitos!
               Mesmo decidido, seria difícil sair de Washington. Havia outra coisa ainda maior para me manter na capital americana por mais tempo: o National Book Festival, evento gratuito que estava começando naquele dia e iria até o seguinte, com mais de cem autores presentes, desde o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, Mario Vargas Lhosa, ao criador do “Diário de um Banana”, Jeff Kinney. Por mais tentador que fosse pegar o autógrafo do autor do Diário de um Banana, decidi partir. Afinal, eu não estava ali pelas folhas ainda viçosas, mas pelas folhas secas, levadas pelos ventos da América. E era isso o que eu faria.


               Ao fim do dia, dei as costas aos vivos e fui em busca dos mortos. Caminhei até a rodoviária. De lá embarquei para Nova York, de onde seguiria rapidamente para Boston e finalmente para Lowell. Por quê? Para pedir a benção de Jack Kerouac antes de cair, de fato, na estrada!
              

Próximo capítulo no dia 09/03/2016: On the road - inspirado pelo livro de Jack Kerouac.