quarta-feira, 23 de março de 2016

Mulherzinhas


               Por toda Concord senti um ar diferente, como se cada folha morta fosse apenas a página de uma antiga história retornando ao solo, nutrindo novos enredos que vicejavam em cada folha de árvore ao meu redor. O que contaria se ainda estivesse em pé a Árvore de Jethro, um antigo carvalho em cuja sombra aquela terra foi comprada dos índios em 1635, para o nascimento da pequena Concord? Em seu lugar havia outra árvore mais nova, indicada por uma placa que celebrava esse pacto que estabeleceria, como disse Henry James: “O maior pequeno lugar da América”. Aquela localidade nunca passou dos vinte mil habitantes, mas através dos séculos testemunhou fatos que marcaram toda a América, não apenas no campo intelectual, com grandes escritores como Alcott, Hawthorne e os transcendentalistas Emerson e Thoreau, mas também no campo da guerra pela independência dos Estados Unidos contra os ingleses, relembrada a cada esquina.
               E é com menção a outra guerra que Louisa May Alcott  inicia sua obra-prima, com quatro “mulherzinhas” lamentando um Natal sem presentes por conta da Guerra Civil Americana, na qual o pai havia se voluntariado para combater pelo Norte contra os Confederados do Sul. Mas não se trata de um livro de batalhas épicas, mas apenas daquelas travadas no cotidiano de uma família americana do final do século 18 (o tema da feliz família americana, ainda unida ao redor da mesa nos jantares, discutindo amenidades). Louisa, que nasceu em 1832, trouxe muito de sua vida pessoal para seus livros, sobretudo em Mulherzinhas, com os personagens absorvendo caraterísticas de sua própria família. Assim viveram na vida real e na ficção as irmãs Anna (Meg), May (Amy), Elizabeth (Beth) e Louisa sendo a personagem Jo, que tinha o sonho de se tornar escritora (o que conseguiu com louvor na vida real). A forte mãe Abigail inspirou a criação da mãe Marmee, e o pai Amos Bronson, Mr. March. Bronson era professor e filósofo transcendentalista, amigo de Ralph Waldo Emerson, tendo a família também convivido com Thoreau.
               Aliás, os Alcott eram uma família extraordinária. Bronson até ajudou a fundar a comunidade agrária utópica de Fruitlands, baseada em princípios transcendentalistas. Infelizmente (ou felizmente para a literatura), a experiência não teve sucesso, os Alcott vieram morar em Concord, onde Louisa May Alcott escreveria o seu clássico juvenil da literatura americana.

              Confesso que quando cheguei em Concord, eu nunca havia lido uma linha sequer dessa escritora. Além do mais, o título de sua obra mais famosa, Mulherzinhas, tampouco me era atraente. Mesmo assim decidi visitar a Orchard House, onde “Mulherzinhas” foi escrita por Louisa em uma escrivaninha, entre duas janelas, que seu pai construiu especialmente para ela. Afinal, se esse livro estava entre os 88 livros que moldaram a América, algo deveria haver de especial nele, mesmo eu não o tendo lido (o que só fiz depois, de volta ao Brasil, folheando uma edição americana ilustrada por Louis Jambor, da Grosset & Dunlap, datada de 1947 e comprada em um sebo paulistano). O que senti ao ler o livro? Bem...
               O que permaneceu dessa viagem literária ao universo de Alcott foi aquela tarde em Concord, diante de uma casa de madeira escurecida, com um pequeno caminho que levava a uma porta verde. Não foi pela leitura do livro que eu compreendi o motivo de “Mulherzinhas” ter se tornado uma obra tão importante. A resposta foi dada por duas mulheres de meia-idade, que contemplei diante da casa dos Alcott. Seriam irmãs? Ambas vislumbravam algo que parecia ir além de uma simples residência, como se aquelas escuras paredes, ao invés de limitarem espaços, expandissem e iluminassem lembranças de tal forma que todo o sentimento delas parecia ter habitado aquele endereço, desde sempre.  
               Vi claramente dois sorrisos desabrochando, como se as mulheres estivessem voltando para casa depois de um longo, longo tempo. E acredito que tenha sido isso mesmo o que eu testemunhei naquela tarde, na Orchard House. Aquelas mulheres, e posso apenas supor, devem ter se encantado com a leitura de “Mulherzinhas” em uma época de inocência e castelos no ar. Sendo assim, de alguma forma, moraram naquela casa durante a infância ou juventude. E quando elas se lançaram um olhar cúmplice de compreensão, de quem teve o prazer de conviver com as pequenas aventuras cotidianas de Jo, Meg, Amy e Beth, eu compreendi a importância daquela obra.
               Eis a beleza de um livro. Ele não precisa conter a grandiosa sabedoria filosófica dos transcedentalistas ou o heroísmo dos que lutaram pela independência de um país por aquelas terras. Ele só precisa conter algo que Louisa soube muito bem colocar em seu livro, que, apesar de fictício em grande parte, tinha a essencial verdade no diminutivo: as mulherzinhas, que sonharam, lutaram e conquistaram pequenas coisas em seu dia a dia e que, no final, revelaram a possibilidade de viver a mais simples e delicada das ambições humanas: a felicidade de uma vida em família.
              
 
Do túmulo de Jack e do local da cabana de Thoreau, recolhi folhas secas, mas da casa de Louisa, colhi uma flor.

 Próximo capítulo no dia 30/03/2016: A letra escarlate - Nathaniel Hawthorne. 


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