quarta-feira, 9 de março de 2016

On the road

Nova York
              
               Vi o meu primeiro dia na América morrer na estrada. Meia-noite e os faróis dos carros no sentido oposto tentavam me cegar. Mas eu ainda conseguia vislumbrar um carro de luzes apagadas, carregando dois amigos, Dean Moriarty e Sal Paradise, e sua trupe de loucos a caminho de Nova York após alguma jornada sem sentido, de volta àquela cidade que os aprisionava apenas para soltá-los novamente, como pássaros de asas feridas, rumo ao oeste.
               Cheguei à Port Authority de madrugada sem ter pregado o olho. A gigantesca rodoviária parecia um velho que agonizava, mas que acreditava que nunca morreria. Pelos corredores, tristes famílias de imigrantes (e quem não é imigrante nesta terra ou em qualquer outra?) arrastavam suas malas de coisas inúteis, vez ou outra, uma mãe de cem quilos deixava um filho esquelético sentado em cima delas, apenas para que ninguém roubasse a sua miséria. E alguns mendigos cantavam algo sobre a noite e de como a música não podia parar. Fui ao banheiro e alguém soltava palavras de amor na privada, conversando ao celular com uma namorada que por um bom motivo não estava ali. Intimidade versus privacidade.
               Não havia o que fazer a não ser esperar o meu ônibus para Boston. E eu não estava ali, no coração da América, para esperar. Arrastei minha mochila para fora, cuspido pelo velho terminal, e ganhei as ruas. Atraído pelas luzes e pela multidão caminhei até a Times Square. Ali senti o peso da solidão, como se uma imensa esfera caísse sobre mim, indicando que mais um ano havia se passado em vão. Não queria ter que carregar isso pelo resto da viagem. De todas as coisas que um homem pode carregar, a solidão com certeza é das mais pesadas. E não falo da solidão dos viúvos e dos órfãos ou daqueles jovens que pensam que a dor da perda do primeiro amor será a última, sem saber que a perda é algo que se arrasta pelo resto da vida. Falo da solidão de estar triste consigo mesmo, de pensar que não há motivo para estar ali ou em qualquer outro lugar, que não há razão de existir. Não, eu não podia baixar a cabeça logo no início da minha peregrinação. Levantei o olhar e encontrei os arcos dourados de uma lanchonete. Foi então que eu percebi que aquilo que eu sentia era apenas fome. Comi e voltei a sorrir. Como a felicidade pode ser tão simples assim? Apenas um estômago cheio.



               Antes que a sede viesse me atormentar em algum ponto da América, comprei uma garrafinha de água. Depois, bastava encher a garrafa em qualquer torneira e eu nunca mais precisaria pagar por ela. E esse pensamento me animou ainda mais.
               Perambulei pelas ruas de Nova York, sabendo que ela nunca me aceitaria. Havia uma infinidade de lugares que eu poderia ir, antecipando minha peregrinação a outros escritores. Mas eu tinha que manter o foco em Jack Kerouac. Pela madrugada, à medida em que as pessoas foram sumindo, me esquivei dos seres fictícios de outros autores. Ainda não era hora de encontrar Holden Caulfield, por exemplo. Sim, eu poderia ter ido ao The White Horse Tavern, na 567 Hudson Street. Mas não queria gastar meu dinheiro com bebida em uma taverna, mesmo sabendo que Jack se embriagou diversas vezes lá. Um peregrino enche a cara? Talvez eu devesse ir a Saint Patrick’s Cathedral, na Quinta Avenida. Mas de noite, eu veria os vitrais? As visões de Cody? Eu já havia rezado nessa catedral em minha primeira vez em Nova York e nada aconteceu. Sei que é absurdo esperar algo de uma conversa com Deus, principalmente quando o que você diz não faz sentido algum. Então, eu simplesmente voltei para o terminal de ônibus e caí fora daquela cidade, sem prece e sóbrio.


Boston - Lowell

               Amanheci em Boston. Eu tinha que tomar cuidado com aquela cidade também, porque por aquelas ruas havia muitas pegadas de escritores. Se eu seguisse algum rastro por ali, poderia ficar por dias naquela Festa do Chá, em um lugar onde as páginas da literatura inglesa começaram a ser viradas, para que a literatura norte-americana pudesse ser escrita.
               Na North Station embarquei em um trem para Lowell. Ao sair da pequena estação, olhei para ambos os lados. Para um lado, o túmulo de Jack. Para o outro, a casa onde ele nasceu. Será que quando Jean-Louis Lebris de Kerouac nasceu naquela pequena cidade de Lowell, Massachusetts, no dia 12 de março de 1922, as estradas já sabiam que ele as conquistaria? Quem era aquele bebê, filho de canadenses de uma cidade de nome tão poético quanto Saint-Hubert-de-Rivière-du-Loup? Não, ele ainda não era Jack. Muito mais do que apenas nascer, Jack tinha consciência da morte de uma forma tão intensa, que ele sabia que entre o nascimento e a morte deveria haver algo, não apenas um espaço vazio, um vácuo, um sopro. Com o ranger do trem que partia às costas, ouvi a voz de Jack arranhando meus ouvidos: “I am writing this book because we´re all going to die”. “Estou escrevendo este livro porque todos nós iremos morrer – Na solidão da minha própria vida, meu pai morto, meu irmão morto...”. Não havia dúvida. Para visitar Jack era preciso inverter a mão da estrada da vida. Primeiro a morte, depois o resto. E que resto!
               Passei por baixo da enferrujada ponte férrea, e uma placa manchada suspirava: “Welcome do Prince Spaghettiville”. Aqueles eram os domínios de uma das maiores fábricas de massa do país. Mas o convite era eco do passado. A refeição já havia sido servida e não havia mais nada na mesa. Em outra placa, um aviso de que a polícia estava de olho. E no número 105 pixado com spray branco um papel colado alertava: “Área contaminada”. Logo avistei ao meu lado o cemitério de St. Patrick e sua placa que indicava que aquele cemitério havia nascido em 1832. Pela grade vi uma pequena lápide no chão que indicava o túmulo de um tal de J. F. Kennedy. Apenas isso, um nome. Não dizia “Presidente dos Estados Unidos”, nem “Pai amoroso” ou qualquer outra coisa. Apenas uma lápide de pedra com duas iniciais e um sobrenome. Isso porque o Kennedy famoso está enterrado em Arlington, ao lado de uma “chama eterna”. Mas, no final, o que significa a morte, senão a igualdade eterna? Aquele JFK e o outro JFK, que diferença fazia? Adiante havia um túmulo de Stephen H. King. Apenas uma única letra muda tudo? Se ao invés de um H, tivéssemos um E? Por que encontrar o túmulo de Jack Kerouac era importante? Não era. E por isso mesmo eu queria ir lá. Porque as coisas aparentemente importantes nesta vida, no final, não valem nada mais do que letras em um túmulo. Jack não havia cruzado a América porque isso era importante. Apenas fez isso porque quis.
               Ao lado do St. Patrick estava o cemitério Edson. Espalhafatosos gansos pastavam por entre as lápides, defecando sobre os sóbrios túmulos. Ao longe, uma garrafa brilhava. Segui o brilho e lá estava a palavra que eu procurava: Kerouac. Havia um bilhete de agradecimento, junto com um cartão do “Six Ft. Swells Press – After hours poetry” debaixo da garrafa, que àquela altura já estava vazia. Aquela garrafa não deixava de ser uma piada, considerando-se que Kerouac morreu de cirrose hepática aos 47 anos. Sentei-me ao lado de Jack, sentindo-me um idiota por ter ido até ali, assim como era idiota a ideia de deixar um bilhete para um morto ou promover um porre em sua homenagem. Mas, que diabos. Eu já estava lá mesmo. Não, não ia tomar um porre, só deixaria um bilhete: Thanks, Jack. I´m on the road. Senti que aquelas palavras eram ainda mais estúpidas, diante de tudo o que Kerouac havia me dado em um momento da minha vida em que eu mesmo abandonei tudo pra pegar a estrada. Mas, foi esse o meu único gesto de agradecimento. Não houve prece.




               — Tendo uma conversinha com o velho Jack?
               Um velho parou na sombra de uma árvore próxima, talvez acostumado a ver aquela cena: um cara crescido com cara de bobo sentado ao lado de um túmulo.
               — Eu não saberia o que dizer a ele – respondi.
               — Então, não diga nada. Só escute.
               Por mais estúpida que fosse a pergunta, eu tive que confirmar:
               — Quem?
               O velho sorriu e foi embora. E eu devo confessar que tentei escutar alguma coisa além daquele vento que assobiava no gargalo da garrafa. MAR. 12, 1922. Olhei para a outra ponta: OCT. 21, 1969.  Logo abaixo estava escrito: “Ele honrou a vida”. Era isso o que eu precisava ouvir. Era hora de caminhar e ver a casa de Ti Jean, como estava escrito acima do nome de Kerouac. Nada de Jack em seu túmulo, apenas um homem de sobrenome Kerouac casado com Stella...  e o pequeno Ti Jean, ele próprio quando criança, porque um homem de verdade quando morre leva consigo os sonhos de infância.
               Caminhei de volta, no sentido que me levaria à casa onde Ti Jean havia nascido, na Lupine Road, número 9. As ruas de Lowell tentavam falar comigo, mas eu ainda não conseguia escutar o que elas queriam me dizer. Apenas segui em direção ao Rio Merrimack. E que visão eu tive das águas fluindo debaixo da ponte de metal avermelhado. O que teria sentido o menino Jean diante daquele poderoso rio? O mesmo rio que trazia velhas histórias e que havia destruído a loja do pai em uma inundação.
               Do outro lado do rio, as ruas se acalmaram sob o sutil véu do silêncio.
               Lá estava a casa, onde Leo e Gabrielle e seus dois primeiros filhos, Gerard and Caroline, moravam quando o pequeno Jean nasceu ali às cinco horas da tarde de um domingo. Entre dois sorridentes bonecos de pano havia uma discreta placa que indicava: Jack Kerouac Birthplace. Vasos de flores a a bandeira americana tremulando...



               Naquele quarteirão, a família ainda morou na Rua Burnaby 35, e depois na casa 34 da rua Beaulieu. Desde criança o pequeno Keroauc nunca morou mais do que quatro anos na mesma casa, antecipando a sua vida errante quando adulto. Eu poderia dar alguns poucos passos até a segunda casa de Jack e depois mais outros tantos, todos do mesmo lado do rio, tudo tão próximo, assim como a escola na qual ele e seu irmão estudaram. O irmão quase nunca ia à escola. Doente, morreu aos nove anos. E assim Jack escreveu em seu livro “Visões de Gerard” que “ as freiras da St. Louis de France Parochial School estavam ao lado da cama prestando atenção às últimas palavras dele porque tinham ouvido as impressionantes revelações celestiais que ele tinha feito”. Eu poderia ter ido até o local do funeral na igreja ali perto, décadas depois. Mas para quê? O que eu queria ouvir daquelas ruas, que vivenciaram a vidinha de dois pequenos irmãos era apenas aquela conversa das visões de Gerard:
               “O céu é todo branco”.
               “Os anjos são como cordeiros, e as crianças e os pais ficam juntos para sempre” dizia ele.
               E eu: “Sont-ils content? Eles são felizes?”
               “Não poderiam ser outra coisa senão felizes”.
               Era por aquela conversa que eu estava sentado na sarjeta diante de uma casa de vasos floridos, em que o pequeno Ti Jean nasceu para viver apenas quatro de seus anos loucos com o santo Gerard, cuja lembrança mais real foi um tapa que ele deu em seu rostinho de inocência. Um tapa que todos nós deveriamos levar, pois esse é o verdadeiro nascimento, quando finalmente tomamos consciência de que a dor existe e que a morte pode levar até os anjos.
               E são felizes? Era essa a questão deste lado do rio Merrimack. Não arredei pé dali, do lugar onde Jack nasceu, pois das outras casas eu não quis ouvir mais nada. Não quis visitar a “Sad Beaulieu”, onde Gerard morreu. E são felizes? A única questão que importa deste lado do rio...

***
              





               Minha peregrinação por Jack não havia se encerrado ali em Lowell. Por toda a América eu veria os seus passos, sua sombra pedindo carona no esgueirar de uma tarde que morre no oeste. Mas havia outros a quem eu precisava visitar. Assim, no meio da ponte sobre o Rio Merrimack, joguei o olhar para o longo curso rio acima. Por aquele rio, Henry David Thoreau viajou com seu irmão John, que morreu de tétano... Thoreau escreveu um livro sobre essa jornada, “Uma semana nos rios Concord e Merrimack”, talvez como um tributo ao seu irmão. A vida parece uma eterna busca em memória de algum irmão que perdemos ao longo do caminho. Pensei em meu irmão Felipe. E segui para Concord.
              


Próximo capítulo no dia 16/03/2016: Walden – inspirado pelo livro de David Henry Thoreau...

Um comentário:

  1. https://antoniopneto.wordpress.com/2016/03/09/contos-do-sol-renascente-a-prosa-atavica-de-andre-kondo/

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