quarta-feira, 2 de março de 2016

Os livros que moldaram a América

 
             Quase dez anos depois, com o meu visto americano prestes a expirar, eu voltava aos Estados Unidos. Da última vez eu havia cruzado a fronteira do México sem deixar o meu cartão de registro de saída. Será que o sistema acusaria essa minha falta burocrática? O oficial de imigração perguntou:
               — Qual o motivo de sua viagem?
               O que eu poderia dizer, senão a verdade?
               — Uma peregrinação literária.
               Pensei que ele fosse ficar curioso com a minha resposta, mas ele sequer levantou o olhar, mantendo-se ocupado com o meu passaporte. Senti que devia explicar:
               — Vim visitar os grandes escritores da América: Jack London, J. D. Salinger, Herman Melville, Hemingway...
               Imaginei que o oficial fosse dizer: “você sabe que eles estão todos mortos, não é?”. Mas ele me interrompeu apenas para perguntar:
               — Com quais recursos você está custeando a sua viagem?
               Sem pensar por um só segundo, respondi:
               — Com poesia.
               Desta vez, o oficial levantou levemente o olhar na minha direção. Mas eu não precisei explicar que havia ganhado minha passagem para Washington da Universidade de Fortaleza, como prêmio pelo meu livro “cem pequenas poesias do dia a dia”. Não precisei dizer que escrevi esse livro em uma ala desativada de um asilo de propriedade da família do tataraneto do Barão de Mauá (será que estudavam história do Brasil por lá?), nem que acabei ali após viver com 50 tailandeses em um sítio em Jundiaí. Não precisei dizer que, com outro poema premiado em concurso literário, recebi o equivalente a 500 dólares da Universidade de São João del-Rey, que seriam o suficiente (rezava eu) para me manter nas próximas duas semanas. Não precisei dizer que minha vida não fazia muito sentido, que às vezes era absurda, mas que, mesmo assim, eu vivia com a verdade no coração. Oficiais de imigração são treinados para discernir a mentira e a verdade. Talvez por isso ele não tenha feito mais perguntas. Apenas disse, ao carimbar o meu passaporte:
               — Bem-vindo aos Estados Unidos da América.





***



Washington D.C.

               Quando embarquei no Brasil abandonei a primavera. Enquanto via o desabrochar das pequenas luzes na latina imensidão derramada pela terra, a primavera estava apenas começando no hemisfério sul. Quando pisei nas terras do norte, era o dia 22 de setembro de 2012. O primeiro dia de outono. Quem trocaria a primavera pelo outono? Alguém como eu, peregrino das folhas caídas.
               Sim, minha viagem começava com uma metáfora. Eu estava nos Estados Unidos para caçar escritores mortos, para sentir seus espíritos gemendo em minha própria alma, para resgatar as folhas caídas de suas obras, sopradas pelos ventos literários até a soleira da minha casa. Se um dia eu quis me tornar um escritor, foi por causa daquelas folhas amareladas de livros mofados, dos sebos, das ruas, que caíram em minhas mãos, em preguiçosas tardes em que eu sonhava em estar em qualquer outro lugar. Minha única passagem possível naqueles dias eram os livros... Mas isso havia mudado. Eu estava ali, na terra que nos deu Hemingway, Jack London e Kerouac, Poe, Thoreau, Melville, Salinger... E eu leria cada um deles, nas folhas caídas em seus túmulos, casas ou qualquer outro lugar que indicasse: o escritor esteve aqui, ele não foi apenas uma ficção. Verdade. Era essa a minha busca. Por isso não era apenas uma viagem. Era uma peregrinação.
               Saí do aeroporto e peguei o metrô até a estação da Greyhound. Comprei uma passagem para toda a América: um Discovery Pass. Em mais alguns dias, aquele passe seria descontinuado pela Greyhound. Fui um dos últimos a obter aquele bilhete mágico, que permitia que eu embarcasse em qualquer um dos milhares de ônibus da Greyhound que cruzavam todos os cantos daquela terra de quase dez milhões de quilômetros quadrados. O passe de quinze dias custou 360 dólares. Como eu tinha 500 dólares, sobraram 140 dólares para gastar com comida e acomodação, o que dava exatamente dez dólares por dia pelos próximos 14 que eu tinha na América. Como já tinha gastado US$ 3,05 com o bilhete do metrô até ali, em um dos dias eu teria que sobreviver com US$ 6,95. Sendo o alimento essencial, cortei o supérfluo: acomodação. Para quê uma cama? Meu leito seria a estrada.
               Com a mochila nas costas, caminhei até a Biblioteca do Congresso, a maior biblioteca do mundo, com seus mais de 162 milhões de itens em cerca de 470 idiomas distribuídos em 1348 quilômetros de prateleiras. Por coincidência ou não, estava sendo realizada uma exposição intitulada: “Books that shaped America”. 

Ali começava de fato a minha peregrinação. Estavam expostos 88 livros que, muito mais do que moldar a América, moldaram as vidas de milhares de pessoas. Afinal, quem nunca ouviu falar em Moby Dick? Quem não sonhou em pegar a estrada depois de ler “On the road”? Ou caminhar pela estrada de tijolos amarelos até o Mágico de Oz? Lá estavam os livros que deram coração ao homem, que seria somente de lata sem os vívidos batimentos da literatura.        
               Mesmo estando em um paraíso de livros, eu não podia continuar ali, porque a minha peregrinação era outra. Eu leria muitos daqueles livros que moldaram a América, mas de uma forma diferente. Eu não estava naquela viagem para tocar os livros de papel, mas para ver onde eles nasceram, sentir as árvores das quais brotaram, com o vento as folheando com a avidez de quem lê o mundo. 
               Mas ainda assim passei pelo Capitólio, por mera formalidade turística. O prédio do congresso americano não deixa de ser uma atração obrigatória para quem está em Washington, mesmo não sendo o foco de minha viagem. Senti-me realmente como um turista no National Statuary Collection, local para o qual cada um dos estados americanos envia a estátua de um filho notável de sua terra. Não pude deixar de perceber a ausência de escritores. Aliás, não era de se estranhar que a maioria das estátuas ali fosse de políticos ou militares. Afinal, estávamos no prédio do Congresso. Não era o lugar para um peregrino literário. Foi então que ouvi o guia do tour gratuito apontar para a estátua de John Gorrie, o inventor do sistema de refrigeração e “pai” do ar-condicionado. O guia fez piada: “não à toa essa estátua foi enviada pela Flórida, que não sobreviveria sem o ar-condicionado”. Definitivamente, não era lugar para um peregrino.
               Decidi focar em minha missão literária. Mas, já fora da coleção de estátuas, encontrei uma que me chamou a atenção no saguão de visitantes. Era a estátua de Jack Swigert, vestindo um traje espacial. Ele foi um dos membros da incrível Missão Apollo 13...
               Em pouco tempo, eu já havia embarcado em mais uma distração: o National Air and Space Museum. Eu já havia visto o traje do primeiro homem no espaço, o cosmonauta Yuri Gagarin, em Moscou. Eu não poderia deixar de ver o traje espacial do primeiro astronauta a pisar na Lua, Neil Armstrong. Mas até chegar a este item do museu, passei por vários aviões, incluindo um Mitsubishi A6M5 Zero, do mesmo modelo utilizado no ataque a Pearl Harbour e depois em ataques kamikazes. No mesmo museu estava o bombardeiro B-29, Enola Gay, que no dia 6 de agosto de 1945 se tornou o primeiro avião a lançar uma bomba atômica. Era triste ver como a história da aviação estava ligada à guerra.
           Enfim, cheguei à ala do museu dedicada à Missão Apollo 11. Mas ao invés do traje espacial de Neil Armstrong, havia uma placa que dizia que a mesma tinha sido retirada da exibição, para manutenção. Tive que me contentar com o traje de Buzz (ou seria o de Collins?). Mas o que importava isso? Acho que ver o traje de Armstrong seria como ler a 1.ª edição de um livro que conta a incrível história de uma missão que alcançou a Lua. O de Buzz seria ler a 2.ª edição e o de Collins a 3.ª edição do mesmo livro. Mas nada disso poderia se comparar a estar dentro do livro, tocar o seu conteúdo. Afinal, não era para isso que eu havia viajado até a América? Pois era isso o que eu ia fazer. Eu não me contentaria a ficar contemplando a lua com trajes alheios. Eu ia tocar a Lua. Ou, ao menos, um pedaço dela.
               No saguão do museu os visitantes têm a oportunidade de tocar em um pequeno pedaço de pedra lunar... E foi isso o que eu fiz, antes de abandonar as distrações. E elas eram muitas! Ora, eu estava no National Mall, um longo corredor de atrações, onde o Instituto Smithsoniano mantém alguns dos melhores museus do mundo e, mais importante para quem tinha o bolso limitado, gratuitos!
               Mesmo decidido, seria difícil sair de Washington. Havia outra coisa ainda maior para me manter na capital americana por mais tempo: o National Book Festival, evento gratuito que estava começando naquele dia e iria até o seguinte, com mais de cem autores presentes, desde o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, Mario Vargas Lhosa, ao criador do “Diário de um Banana”, Jeff Kinney. Por mais tentador que fosse pegar o autógrafo do autor do Diário de um Banana, decidi partir. Afinal, eu não estava ali pelas folhas ainda viçosas, mas pelas folhas secas, levadas pelos ventos da América. E era isso o que eu faria.


               Ao fim do dia, dei as costas aos vivos e fui em busca dos mortos. Caminhei até a rodoviária. De lá embarquei para Nova York, de onde seguiria rapidamente para Boston e finalmente para Lowell. Por quê? Para pedir a benção de Jack Kerouac antes de cair, de fato, na estrada!
              

Próximo capítulo no dia 09/03/2016: On the road - inspirado pelo livro de Jack Kerouac.
              
                
              
  
              
              
              
              
              
              

               

4 comentários:

  1. Excelente, como tudo que você escreve, André! Já estou pegando carona nessa sua viagem maravilhosa! Só não deixe de avisar quando sair a continuação...( eu vi que está marcada para o dia 9, mas eu esqueço...rs)

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    1. Obrigado, Henriette! Fico muito feliz com a sua companhia nesta viagem! Se quiser, é só colocar o seu e-mail em "Atualizações por e-mail" e apertar o botão "Submit". Você receberá um aviso quando eu fizer alguma postagem nova. Mas de qualquer forma pode deixar que eu aviso sim! Abraço!

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  2. Que maravilha... fico honrado em estar lendo seus relatos, vi sua participação no programa "Hora do Enem" e corri para conhecer mais de ti e tua obra e me deparo com essa peregrinação sobre um passado tão presente, e imortal.

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    1. Obrigado, Felipe! Fico feliz que tenha assistido ao programa. Uma boa peregrinação para nós! Abraços!

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