quarta-feira, 20 de abril de 2016

Moby Dick - Herman Melville

Tomei o trem de volta, depois um ônibus. Já era madrugada nos bancos do terminal de Boston, quando joguei o corpo ao sonho. Ao amanhecer, percorri as ancoradas ruas, com os pensamentos à deriva. Os passos me levaram ao mar. O mesmo mar que atraiu Herman Melville. A bordo do baleeiro Acushnet, Melville singrou os Mares do Sul, até desertar o navio nas ilhas Marquesas. Entre os ilhéus, encontrou inspiração para os seus dois primeiros romances: “Taipi: paraíso de canibais” e “Mares do Sul”. Conseguiu um relativo sucesso, que não se manteve durante toda a vida. Moby Dick foi um fracasso de vendas... Aos 72 anos, Herman Melville morria totalmente desconhecido, a ponto de seu nome ser registrado no obituário de um jornal como “Henry Melville”. De que adianta a glória póstuma, que registrou o nome de Melville como um dos maiores escritores da América, e a sua obra “Moby Dick” como um clássico mundial?


               Não importa quanto tempo havia se passado desde o dia em que Melville retornou, desembarcando em Boston de suas aventuras pelos mares do mundo, com a bagagem repleta de oceano... Ainda hoje, não há como ficar indiferente diante do mar. E foi por isso que eu dei as costas a ele e rumei de volta ao interior, para a cidade de Pittsfield, em busca de uma montanha…
               Parece não fazer muito sentido, mas quanto mais eu me afastava do mar naquele ônibus, mais próximo eu me sentia a ele. Assim cheguei a caminhar pelas ruas de Pittsfield, com o céu cuspindo gotículas de água em meu rosto. Em pouco tempo, meu corpo era fustigado pela chuva. Eu estava próximo a casa em que Herman Melville colocou o ponto final em “Moby Dick”. Estava prestes a ser alvejado pela ponta da Arrowhead, como é chamada a sua casa, que hoje se tornou um museu.  Por falar nisso, tive que pagar com o valor da comida de um dia inteiro pelo meu ingresso. Isso fez meu estômago reclamar.  Estava um tanto cansado de noites sem cama e um tanto incomodado com a chuva...
               Não havia muitos visitantes, contei todos nos dedos da mão. O pequeno grupo embarcou na casa como quem entra em um escaler, olhos fixos nas mãos do timoneiro, que apontava para as relíquias resgatadas de um tempo naufragado. E as citações dos livros de Melville ecoaram pelas paredes, como intermináveis ondas. Era como se uma tempestade se avizinhasse. Não, muito mais que isso. Que sensação era aquela, dentro do quarto de Melville?  Sobre Arrowhead, o escritor revelou em uma carta:
               “Eu tenho uma espécie de sentimento de mar aqui no campo ... O meu quarto parece uma cabine de navio; e à noite, quando eu acordo e ouço os ventos guinchando, eu quase imagino que há muita vela na casa, e que seria melhor ir ao telhado para guarnecer a chaminé”.
               O assoalho rangeu e através da janela o timoneiro apontou para o horizonte, anunciando: Moby Dick. Lá estava a inspiração (lenda?) para a Moby Dick de Herman Melville: o Monte Greylock, com sua insuspeita forma de baleia. Ou não? Uma densa neblina cobria os campos e no horizonte não havia nada além do invisível.
               Quando o tour pela casa acabou, os outros visitantes simplesmente embarcaram em seus carros e navegaram o asfalto, rumo às suas casas. Para onde eu iria? O guia também foi embora, porque aquele seria o último grupo do dia. Não chovia mais. Estava tudo calmo. Continuei andando pelos arredores da casa, como quem admira um navio ancorado no porto. Sentei-me na varanda da casa, apertando os olhos para tentar extrair do horizonte alguma silhueta de baleia. Nada. Levantei-me para explorar os arredores.
               No campo próximo encontrei uma representação de uma baleia parcialmente “mergulhada” na terra...  Dois homens em um barco. Enquanto um remava, o outro direcionava um arpão para o dorso do cetáceo. Aquela cena congelada me fez refletir. Não pensei em Ismael ou no capitão Ahab, nem em sua obsessiva busca por Moby Dick e o desejo de matá-la, em vingança por ela ter levado a sua perna. Estranhamente, apesar de estar diante de uma tragédia anunciada, orquestrada por um homem que tentava ultrapassar os limites do impossível, senti apenas uma estranha paz.  Como aquele pequeno homem poderia vencer uma grande baleia branca? Essa não seria a mesma luta de todos nós, meros mortais, diante do inevitável destino ou da face de Deus?


               Lembrei-me da primeira vez que vi uma baleia viva. Na verdade, mais de uma. Eu estava sobrevoando a costa da Austrália, quando o capitão apenas anunciou aos passageiros:  “Olhem para as baleias. Não parecem peixinhos?”.  Sim, aqueles gigantescos seres pareciam apenas pequenos peixes na vastidão do oceano...
               Então, essa lembrança soprada do outro lado do mundo me fez sorrir nos ondulados campos de Melville. Afinal, tudo é uma questão de ponto de vista. A minha busca nesta vida nada mais era do que um ínfimo plâncton entre os dentes de um peixinho no oceano. Tudo o que imaginava que poderia ser grandioso, escrever um livro, viajar o mundo, ir atrás da Moby Dick de Herman Melville, era apenas um minúsculo acontecimento, um ínfimo milésimo de segundo na face do tempo. Mesmo assim, como era bom poder enfrentar cada pequeno desafio (fome, chuva, cansaço) na busca em dar à minha vida... ao menos uma gota de oceano.







Próximo capítulo: O corvo – Edgar Allan Poe.



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