Tomei o trem de volta, depois um ônibus. Já era madrugada
nos bancos do terminal de Boston, quando joguei o corpo ao sonho. Ao amanhecer,
percorri as ancoradas ruas, com os pensamentos à deriva. Os passos me levaram ao
mar. O mesmo mar que atraiu Herman Melville. A bordo do baleeiro Acushnet,
Melville singrou os Mares do Sul, até desertar o navio nas ilhas Marquesas.
Entre os ilhéus, encontrou inspiração para os seus dois primeiros romances: “Taipi:
paraíso de canibais” e “Mares do Sul”. Conseguiu um relativo sucesso, que não
se manteve durante toda a vida. Moby Dick foi um fracasso de vendas... Aos 72
anos, Herman Melville morria totalmente desconhecido, a ponto de seu nome ser
registrado no obituário de um jornal como “Henry Melville”. De que adianta a
glória póstuma, que registrou o nome de Melville como um dos maiores escritores
da América, e a sua obra “Moby Dick” como um clássico mundial?
Não
importa quanto tempo havia se passado desde o dia em que Melville retornou, desembarcando
em Boston de suas aventuras pelos mares do mundo, com a bagagem repleta de oceano...
Ainda hoje, não há como ficar indiferente diante do mar. E foi por isso que eu
dei as costas a ele e rumei de volta ao interior, para a cidade de Pittsfield,
em busca de uma montanha…
Parece
não fazer muito sentido, mas quanto mais eu me afastava do mar naquele ônibus,
mais próximo eu me sentia a ele. Assim cheguei a caminhar pelas ruas de
Pittsfield, com o céu cuspindo gotículas de água em meu rosto. Em pouco tempo,
meu corpo era fustigado pela chuva. Eu estava próximo a casa em que Herman
Melville colocou o ponto final em “Moby Dick”. Estava prestes a ser alvejado
pela ponta da Arrowhead, como é chamada a sua casa, que hoje se tornou um
museu. Por falar nisso, tive que pagar
com o valor da comida de um dia inteiro pelo meu ingresso. Isso fez meu
estômago reclamar. Estava um tanto
cansado de noites sem cama e um tanto incomodado com a chuva...
Não
havia muitos visitantes, contei todos nos dedos da mão. O pequeno grupo
embarcou na casa como quem entra em um escaler, olhos fixos nas mãos do
timoneiro, que apontava para as relíquias resgatadas de um tempo naufragado. E as
citações dos livros de Melville ecoaram pelas paredes, como intermináveis ondas.
Era como se uma tempestade se avizinhasse. Não, muito mais que isso. Que
sensação era aquela, dentro do quarto de Melville? Sobre Arrowhead, o escritor revelou em uma
carta:
“Eu
tenho uma espécie de sentimento de mar aqui no campo ... O meu quarto parece
uma cabine de navio; e à noite, quando eu acordo e ouço os ventos guinchando,
eu quase imagino que há muita vela na casa, e que seria melhor ir ao telhado para
guarnecer a chaminé”.
O
assoalho rangeu e através da janela o timoneiro apontou para o horizonte, anunciando:
Moby Dick. Lá estava a inspiração (lenda?) para a Moby Dick de Herman Melville:
o Monte Greylock, com sua insuspeita forma de baleia. Ou não? Uma densa neblina
cobria os campos e no horizonte não havia nada além do invisível.
Quando o
tour pela casa acabou, os outros visitantes simplesmente embarcaram em seus
carros e navegaram o asfalto, rumo às suas casas. Para onde eu iria? O guia
também foi embora, porque aquele seria o último grupo do dia. Não chovia mais.
Estava tudo calmo. Continuei andando pelos arredores da casa, como quem admira um
navio ancorado no porto. Sentei-me na varanda da casa, apertando os olhos para
tentar extrair do horizonte alguma silhueta de baleia. Nada. Levantei-me para
explorar os arredores.
No campo
próximo encontrei uma representação de uma baleia parcialmente “mergulhada” na
terra... Dois homens em um barco. Enquanto
um remava, o outro direcionava um arpão para o dorso do cetáceo. Aquela cena
congelada me fez refletir. Não pensei em Ismael ou no capitão Ahab, nem em sua
obsessiva busca por Moby Dick e o desejo de matá-la, em vingança por ela ter
levado a sua perna. Estranhamente, apesar de estar diante de uma tragédia
anunciada, orquestrada por um homem que tentava ultrapassar os limites do impossível,
senti apenas uma estranha paz. Como
aquele pequeno homem poderia vencer uma grande baleia branca? Essa não seria a
mesma luta de todos nós, meros mortais, diante do inevitável destino ou da face
de Deus?
Lembrei-me
da primeira vez que vi uma baleia viva. Na verdade, mais de uma. Eu estava
sobrevoando a costa da Austrália, quando o capitão apenas anunciou aos passageiros: “Olhem para as baleias. Não parecem
peixinhos?”. Sim, aqueles gigantescos
seres pareciam apenas pequenos peixes na vastidão do oceano...
Então,
essa lembrança soprada do outro lado do mundo me fez sorrir nos ondulados
campos de Melville. Afinal, tudo é uma questão de ponto de vista. A minha busca
nesta vida nada mais era do que um ínfimo plâncton entre os dentes de um
peixinho no oceano. Tudo o que imaginava que poderia ser grandioso, escrever um
livro, viajar o mundo, ir atrás da Moby Dick de Herman Melville, era apenas um
minúsculo acontecimento, um ínfimo milésimo de segundo na face do tempo. Mesmo
assim, como era bom poder enfrentar cada pequeno desafio (fome, chuva, cansaço)
na busca em dar à minha vida... ao menos uma gota de oceano.
Próximo capítulo: O corvo – Edgar Allan Poe.
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