Voltei
para Boston, onde dormi nos desconfortáveis (para a posição horizontal) bancos
da rodoviária. Apenas quem tem uma passagem (ou o passe da Greyhound) pode
permanecer ali durante a madrugada. Alguns caras foram expulsos e as portas se
fecharam. Quando tudo se tornou silêncio, fiquei pensando em como eu poderia
chegar até a casa de Salinger. Eu havia conseguido informações sobre todos os locais
que eu pretendia visitar: casas, túmulos, locais de alguma relevância na
biografia dos escritores da minha lista. Tudo isso estava em meu guia, que eu
mesmo havia feito com informações que colhi na Internet. Mas, de J. D. Salinger
não havia pistas. Em um famoso site de busca de túmulos (Find a Grave), sobre o
local de sepultamento do escritor está escrito: Desconhecido. Isso só me
deixava ainda mais ansioso pela minha busca por Salinger.
Ao
amanhecer, peguei um ônibus para White River Junction, pequena localidade de
cerca de dois mil habitantes, de onde tomaria um trem da AMTRAK para Windsor.
Pelo que eu tinha constatado, o trem passava apenas uma vez por dia em direção
a essa cidade, por isso fiquei surpreso ao ver a plataforma vazia próximo à
hora de embarque. Um senhor apareceu, ainda mais surpreso ao me ver por ali.
—
Esperando pelo trem?
Pensei
que fosse uma pergunta boba, já que era óbvio que sim, pois eu estava na
plataforma com a cara de ansiedade de quem espera.
— Você
já ligou pedindo para o trem parar?
Como fiz
cara de bobo, ele me levou a um telefone, onde pude fazer uma ligação gratuita
para a AMTRAK. Peguei um número de reserva. Quem era bobo, afinal? Se não fosse
por aquele homem, eu teria que esperar mais um dia pelo próximo trem! Isso não
seria problema, porque fui informado de que eu poderia me hospedar no Hotel
Coolidge, ali pertinho. O hotel era famoso por ser assombrado por um fantasma
de um antigo hóspede que havia morrido ali. Depois de saber disso, fiquei ainda
mais feliz por não ter perdido o trem... Ele ainda se despediu dizendo que as
coisas por ali andavam um pouco paradas. Concordei. Não quis olhar para trás
quando o trem partiu. Vai que a plataforma estivesse vazia?
Ao desembarcar
em Windsor, ainda não tinha encontrado a resposta de como eu poderia chegar à
casa de Salinger. Será que eu poderia parar alguém e apenas perguntar:
— Por
favor, você poderia me dizer onde fica a casa de Salinger?
Na
verdade, Salinger morava em Cornish, cidade vizinha a Windsor, mas suas “aparições”
nas últimas décadas antes de morrer se davam nesta última. Sem saber por onde
começar, achei que um bom lugar para obter informações seria o Windsor Welcome Center.
Fui atendido por uma simpática senhora de cabelos brancos, óculos e sorriso que
parecia não dormir naquele rosto. Parecia um começo promissor. Conversamos
sobre a cidade, sobre os heróis de Windsor, sobre o trem e as flores. Mas
quando finalmente perguntei sobre Salinger, aquele sorriso esmaeceu, só um
pouquinho, mas deu para perceber que aquele não era um assunto qualquer.
Obviamente, ela não me indicou o caminho para a casa de Salinger, nem a
localização do túmulo dele. Mas sepultamos a conversa entre sorrisos.
Segui
minha caminhada aleatória, até parar diante de uma casa de repouso que
ostentava um curioso cardápio em uma placa em seu quintal. “Aloha Chicken Legs,
Chinese Rice, Zucchini, Tapioca Pudding – Suggested Donation: Over 60 – $3,00,
Under 60: $4,00”. Não pensei duas vezes. Foi o melhor almoço da minha viagem
até ali (e não digo isso por só ter comido bananas, pizzas e hambúrgueres). Não
foi apenas pelo sabor que aquele almoço foi especial, mas, principalmente, pela
companhia. Logo de cara, Mr. Charles me chamou para compartilhar a sua mesa.
E
conversamos sobre coisas que se conversa com desconhecidos ao redor de uma mesa,
enquanto se degusta deliciosas coxas de galinha. Conversei brevemente com
outros “velhinhos”, todos muito vivos e alertas, pessoas despertas. Deixei
cinco dólares, mas queria ter deixado mais. Mr. Charles perguntou para onde eu
estava indo. Não falei nada sobre Salinger, apenas que estava meio perdido. Ele
me ofereceu carona, mesmo eu não tendo lhe falado destino algum. O interessante
era que aquele lugar parecia mais um centro de convivência da terceira idade do
que propriamente um asilo, pois alguns podiam simplesmente sair a hora que
quisessem. Nem todos tinham carro, aliás, só vi o do Mr. Charles estacionado por
perto.
Mr.
Charles me levou para vários lugares interessantes em Windsor. Ele era dos
meus, pois quando chegamos ao American Precision Museum, ele não quis pagar
pela entrada. Não que eu não quisesse pagar, era mais por uma questão de ter
pouco dinheiro. Mr. Charles gostava mesmo era das coisas gratuitas. Além do
mais...
— Pagar
para ver coisas velhas? Eu vejo isso todo dia de graça, no espelho – e Mr.
Charles sorriu.
Depois,
quando ele descobriu que eu queria ir até a casa de Salinger, ele me levou até
a velha ponte que liga Windsor a Cornish e me disse:
— Daqui pra
frente é com você. É só seguir a estrada para lá. Não vou te levar até o fim porque
chega uma hora em que cada um tem que descobrir o próprio caminho.
Apertamos
as mãos e ele partiu.
Atravessei
a ponte que mais parecia um túnel, por ser coberta. E na luz do fim do túnel,
virei para o lado apontado por Mr. Charles e comecei a dar os meus primeiros
passos em Cornish. Quando cheguei a um entroncamento, fiquei sem saber para
onde ir. Foi quando vi um homem caminhando pela rodovia, boné na cabeça, barba,
roupas simples.
— Por
favor, como faço para chegar na casa de Salinger? – tentei ser direto.
— Há
vários caminhos...
— Qual é
o mais rápido.
— Bem,
se está com pressa, você já chegou.
Fiquei
pensando no que ele queria dizer com aquilo. Como não consegui decifrar, tive
que perguntar:
— Como
assim?
— Você
já está em Cornish. Eu vivo em Cornish. Aqui é a minha casa... Então...
Na beira
da estrada, comecei a ouvir a história da vida daquele homem. Como ele próprio
havia reformado a casa e feito os móveis com as próprias mãos. De como ele
havia sido aposentado por invalidez, por ter sérios problemas na coluna. De
como continuava a trabalhar mesmo assim, informalmente, fazendo móveis com suas
ferramentas manuais. E ouvi sobre a vida por ali, ri de piadas que não entendi
e assim o papo foi fluindo. O que mais me chamou a atenção na conversa foi esta
frase:
— Meus
gatos precisam de mim, por isso eu sigo em frente... Por isso caminho.
E qual
seriam as razões dos meus passos? Por que eu estava caminhando naquela estrada
em Cornish, sem saber como chegar a algum lugar? E aí veio tudo de volta, da época quando eu
li “O apanhador no campo de centeio” pela primeira vez, presente de uma
ex-namorada de adolescência, que rabiscou na orelha do livro essas palavras: “Eu
também te amo”. E pensei no que aquilo significava, por que o “também” e me
lembrei de que aquela era uma época em que eu não sabia direito o que era amar.
E será que alguém sabe? E de como as coisas pareciam difíceis, de como tudo
parecia acabar em uma viagem sem sentido em uma grande cidade, e de como era
revoltante ver palavrões rabiscados por todos os lugares xingando os incautos
que os lessem por engano ou tédio. Sobretudo, me lembrei dessa parte do livro,
que eu considero uma das mais belas que eu já li, quando Holden Caulfield diz o
que ele queria fazer nessa vida:
“Fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de
alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos, e
ninguém por perto - quer dizer, ninguém grande - a não ser eu. E eu fico na
beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que
agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a
correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar
o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de
centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer”.
Pensei
em Cecile, em como eu parecia um garotinho perdido ao chegar em Windsor, e em
como ela me falou sobre a cidade de um jeito tão carinhoso para que eu
compreendesse tudo e me sentisse um pouco em casa. Depois pensei em Mr. Charlie
e em como ele pegou a minha mão e me levou por toda a cidade, me mostrando cada
canto, dizendo “olhe”, abra os olhos. Veja o que está à sua volta! Mas ele
sabia que não poderia evitar eventuais quedas pelo caminho. Por fim, ali estava
Paul diante de mim, dizendo que eu estava correndo sem olhar para onde eu
estava indo. Era isso... Eu estava correndo para chegar a algum lugar
imaginário, porque, naquele instante, eu percebi que a casa de Salinger era
apenas isso, um lugar que vive no imaginário das pessoas que não enxergam a
própria casa e buscam as dos outros, como se isso fosse mudar as suas vidas.
Sim, lá estava Paul, desempregado, o cara que fazia a própria cadeira para
poder se sentar, andando mesmo com dor nas costas, porque precisava chegar à
cidade vizinha apenas para comprar ração para os seus gatos, porque eles
precisavam dele. Aquele cara, o povo de Cornish e de Windsor, todos eles eram
os apanhadores no campo de centeio... Eu e todos os visitantes éramos apenas
garotinhos correndo sem direção... E eu entendi o motivo que levou J. D.
Salinger a viver naquele lugar, onde o trem passa apenas uma vez por dia (e às
vezes sequer para), em que as pontes são cobertas e servem arroz chinês e pudim
de tapioca em asilos para caras como eu, que só pensavam em encontrar Salinger,
quando o importante era perceber que já estávamos lá, estávamos todos no campo
de centeio...
— Paul,
obrigado.
Voltei
pela mesma ponte para Windsor, feliz por ter sacado tudo. Não precisava correr
atrás de Salinger. Entrei em um restaurante para tomar um refrigerante. Sentei
em um lugar e a moça no balcão me disse assim:
— Mr.
Salinger costumava se sentar aí...
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