quarta-feira, 13 de abril de 2016

O apanhador no campo de centeio - J. D. Salinger

               Voltei para Boston, onde dormi nos desconfortáveis (para a posição horizontal) bancos da rodoviária. Apenas quem tem uma passagem (ou o passe da Greyhound) pode permanecer ali durante a madrugada. Alguns caras foram expulsos e as portas se fecharam. Quando tudo se tornou silêncio, fiquei pensando em como eu poderia chegar até a casa de Salinger. Eu havia conseguido informações sobre todos os locais que eu pretendia visitar: casas, túmulos, locais de alguma relevância na biografia dos escritores da minha lista. Tudo isso estava em meu guia, que eu mesmo havia feito com informações que colhi na Internet. Mas, de J. D. Salinger não havia pistas. Em um famoso site de busca de túmulos (Find a Grave), sobre o local de sepultamento do escritor está escrito: Desconhecido. Isso só me deixava ainda mais ansioso pela minha busca por Salinger.
               Ao amanhecer, peguei um ônibus para White River Junction, pequena localidade de cerca de dois mil habitantes, de onde tomaria um trem da AMTRAK para Windsor. Pelo que eu tinha constatado, o trem passava apenas uma vez por dia em direção a essa cidade, por isso fiquei surpreso ao ver a plataforma vazia próximo à hora de embarque. Um senhor apareceu, ainda mais surpreso ao me ver por ali.
               — Esperando pelo trem?
               Pensei que fosse uma pergunta boba, já que era óbvio que sim, pois eu estava na plataforma com a cara de ansiedade de quem espera.
               — Você já ligou pedindo para o trem parar?
               Como fiz cara de bobo, ele me levou a um telefone, onde pude fazer uma ligação gratuita para a AMTRAK. Peguei um número de reserva. Quem era bobo, afinal? Se não fosse por aquele homem, eu teria que esperar mais um dia pelo próximo trem! Isso não seria problema, porque fui informado de que eu poderia me hospedar no Hotel Coolidge, ali pertinho. O hotel era famoso por ser assombrado por um fantasma de um antigo hóspede que havia morrido ali. Depois de saber disso, fiquei ainda mais feliz por não ter perdido o trem... Ele ainda se despediu dizendo que as coisas por ali andavam um pouco paradas. Concordei. Não quis olhar para trás quando o trem partiu. Vai que a plataforma estivesse vazia?
               Ao desembarcar em Windsor, ainda não tinha encontrado a resposta de como eu poderia chegar à casa de Salinger. Será que eu poderia parar alguém e apenas perguntar:
               — Por favor, você poderia me dizer onde fica a casa de Salinger?
               Na verdade, Salinger morava em Cornish, cidade vizinha a Windsor, mas suas “aparições” nas últimas décadas antes de morrer se davam nesta última. Sem saber por onde começar, achei que um bom lugar para obter informações seria o Windsor Welcome Center. Fui atendido por uma simpática senhora de cabelos brancos, óculos e sorriso que parecia não dormir naquele rosto. Parecia um começo promissor. Conversamos sobre a cidade, sobre os heróis de Windsor, sobre o trem e as flores. Mas quando finalmente perguntei sobre Salinger, aquele sorriso esmaeceu, só um pouquinho, mas deu para perceber que aquele não era um assunto qualquer. Obviamente, ela não me indicou o caminho para a casa de Salinger, nem a localização do túmulo dele. Mas sepultamos a conversa entre sorrisos.
               Segui minha caminhada aleatória, até parar diante de uma casa de repouso que ostentava um curioso cardápio em uma placa em seu quintal. “Aloha Chicken Legs, Chinese Rice, Zucchini, Tapioca Pudding – Suggested Donation: Over 60 – $3,00, Under 60: $4,00”. Não pensei duas vezes. Foi o melhor almoço da minha viagem até ali (e não digo isso por só ter comido bananas, pizzas e hambúrgueres). Não foi apenas pelo sabor que aquele almoço foi especial, mas, principalmente, pela companhia. Logo de cara, Mr. Charles me chamou para compartilhar a sua mesa.



               E conversamos sobre coisas que se conversa com desconhecidos ao redor de uma mesa, enquanto se degusta deliciosas coxas de galinha. Conversei brevemente com outros “velhinhos”, todos muito vivos e alertas, pessoas despertas. Deixei cinco dólares, mas queria ter deixado mais. Mr. Charles perguntou para onde eu estava indo. Não falei nada sobre Salinger, apenas que estava meio perdido. Ele me ofereceu carona, mesmo eu não tendo lhe falado destino algum. O interessante era que aquele lugar parecia mais um centro de convivência da terceira idade do que propriamente um asilo, pois alguns podiam simplesmente sair a hora que quisessem. Nem todos tinham carro, aliás, só vi o do Mr. Charles estacionado por perto.
               Mr. Charles me levou para vários lugares interessantes em Windsor. Ele era dos meus, pois quando chegamos ao American Precision Museum, ele não quis pagar pela entrada. Não que eu não quisesse pagar, era mais por uma questão de ter pouco dinheiro. Mr. Charles gostava mesmo era das coisas gratuitas. Além do mais...
               — Pagar para ver coisas velhas? Eu vejo isso todo dia de graça, no espelho – e Mr. Charles sorriu.
               Depois, quando ele descobriu que eu queria ir até a casa de Salinger, ele me levou até a velha ponte que liga Windsor a Cornish e me disse:
               — Daqui pra frente é com você. É só seguir a estrada para lá. Não vou te levar até o fim porque chega uma hora em que cada um tem que descobrir o próprio caminho.
               Apertamos as mãos e ele partiu.
               Atravessei a ponte que mais parecia um túnel, por ser coberta. E na luz do fim do túnel, virei para o lado apontado por Mr. Charles e comecei a dar os meus primeiros passos em Cornish. Quando cheguei a um entroncamento, fiquei sem saber para onde ir. Foi quando vi um homem caminhando pela rodovia, boné na cabeça, barba, roupas simples.
               — Por favor, como faço para chegar na casa de Salinger? – tentei ser direto.
               — Há vários caminhos...
               — Qual é o mais rápido.
               — Bem, se está com pressa, você já chegou.
               Fiquei pensando no que ele queria dizer com aquilo. Como não consegui decifrar, tive que perguntar:
               — Como assim?
               — Você já está em Cornish. Eu vivo em Cornish. Aqui é a minha casa... Então...
               Na beira da estrada, comecei a ouvir a história da vida daquele homem. Como ele próprio havia reformado a casa e feito os móveis com as próprias mãos. De como ele havia sido aposentado por invalidez, por ter sérios problemas na coluna. De como continuava a trabalhar mesmo assim, informalmente, fazendo móveis com suas ferramentas manuais. E ouvi sobre a vida por ali, ri de piadas que não entendi e assim o papo foi fluindo. O que mais me chamou a atenção na conversa foi esta frase:
               — Meus gatos precisam de mim, por isso eu sigo em frente... Por isso caminho.
               E qual seriam as razões dos meus passos? Por que eu estava caminhando naquela estrada em Cornish, sem saber como chegar a algum lugar? E aí veio tudo de volta, da época quando eu li “O apanhador no campo de centeio” pela primeira vez, presente de uma ex-namorada de adolescência, que rabiscou na orelha do livro essas palavras: “Eu também te amo”. E pensei no que aquilo significava, por que o “também” e me lembrei de que aquela era uma época em que eu não sabia direito o que era amar. E será que alguém sabe? E de como as coisas pareciam difíceis, de como tudo parecia acabar em uma viagem sem sentido em uma grande cidade, e de como era revoltante ver palavrões rabiscados por todos os lugares xingando os incautos que os lessem por engano ou tédio. Sobretudo, me lembrei dessa parte do livro, que eu considero uma das mais belas que eu já li, quando Holden Caulfield diz o que ele queria fazer nessa vida:

“Fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos, e ninguém por perto - quer dizer, ninguém grande - a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer”.

               Pensei em Cecile, em como eu parecia um garotinho perdido ao chegar em Windsor, e em como ela me falou sobre a cidade de um jeito tão carinhoso para que eu compreendesse tudo e me sentisse um pouco em casa. Depois pensei em Mr. Charlie e em como ele pegou a minha mão e me levou por toda a cidade, me mostrando cada canto, dizendo “olhe”, abra os olhos. Veja o que está à sua volta! Mas ele sabia que não poderia evitar eventuais quedas pelo caminho. Por fim, ali estava Paul diante de mim, dizendo que eu estava correndo sem olhar para onde eu estava indo. Era isso... Eu estava correndo para chegar a algum lugar imaginário, porque, naquele instante, eu percebi que a casa de Salinger era apenas isso, um lugar que vive no imaginário das pessoas que não enxergam a própria casa e buscam as dos outros, como se isso fosse mudar as suas vidas. Sim, lá estava Paul, desempregado, o cara que fazia a própria cadeira para poder se sentar, andando mesmo com dor nas costas, porque precisava chegar à cidade vizinha apenas para comprar ração para os seus gatos, porque eles precisavam dele. Aquele cara, o povo de Cornish e de Windsor, todos eles eram os apanhadores no campo de centeio... Eu e todos os visitantes éramos apenas garotinhos correndo sem direção... E eu entendi o motivo que levou J. D. Salinger a viver naquele lugar, onde o trem passa apenas uma vez por dia (e às vezes sequer para), em que as pontes são cobertas e servem arroz chinês e pudim de tapioca em asilos para caras como eu, que só pensavam em encontrar Salinger, quando o importante era perceber que já estávamos lá, estávamos todos no campo de centeio...
               — Paul, obrigado.
               Voltei pela mesma ponte para Windsor, feliz por ter sacado tudo. Não precisava correr atrás de Salinger. Entrei em um restaurante para tomar um refrigerante. Sentei em um lugar e a moça no balcão me disse assim:
               — Mr. Salinger costumava se sentar aí...


              

             

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