quarta-feira, 27 de abril de 2016

O corvo - Edgar Allan Poe


Voltei para Nova Iorque, onde mais uma vez perambulei em busca de nada ou talvez de tudo. Antes do amanhecer, eu já estava em outro ônibus rumo a Baltimore. Ao meu lado sentou-se o C.E.O de uma companhia... de Poesia. Ele estava elegantemente vestido com terno e gravata, mas ainda assim com o olhar de quem se despe diante da Poesia. Tão pesadas estavam as minhas pálpebras naquela noite que adormeci ouvindo palavras que cada vez mais perdiam o sentido. Ao despertar e me deparar com o assento vazio, imaginei se realmente eu havia conversado sobre poesia com um homem de terno e boné, que falava sobre segredos árabes, sobre as noites da África e sobre viagens em ônibus de assentos negros e choros de bebês. Se eu não acordasse com o cartão de visita dele em meu bolso, talvez eu pensasse que tudo não havia passado de um sonho, que nada daquilo tinha realmente acontecido. A vida seria isso? Apenas um cartão de visita? Nunca mais o vi.


Saí do terminal e acabei ao lado do estádio do Baltimore Ravens (os Corvos de Baltimore). Em poucos passos já estava perdido. Pensei, será que se eu perguntar alguém saberia me indicar o caminho para a casa de Edgar Allan Poe? A primeira pessoa que parei disparou:

— Sim, eu sei onde fica. Mas corra, porque a casa dele vai fechar…

A modesta casa de Poe naquela cidade havia se tornado um pequeno museu, que por falta de recursos estava prestes a encerrar suas atividades. O que seria feito do seu acervo? Estaria tudo fadado a ser emparedado para sempre? Corri. Fui me perdendo e perguntando pelo caminho as indicações para a casa de Poe.

— Quem? – alguns indagavam.

A aparente sorte inicial não se repetiu, mas foi falha minha. Eu estava perguntando como se Poe ainda estivesse vivo. A senhora, o senhor… sabe onde fica a casa de Edgar Allan Poe? Só percebi isso quando uma grande mulher negra gritou para as pessoas ao redor:

— Vocês conhecem algum Edgar Poe que mora por aqui?

Quando eu ia esclarecer sobre a mortuária condição de Poe, ela insistiu, como em um leilão de almas:

— Alguém conhece Edgar Poe? Alguém?

E antes que eu pudesse dizer qualquer coisa ela lamentou:

— Como isso é triste. Eu moro nessa vizinhança há anos e não conheço esse Mr. Poe… Ninguém conhece. Isso é mesmo muito triste. Quando ele morrer, quem irá ao seu funeral?

E eu percebi que ela realmente se preocupava com isso. Ela se lamentava sem sequer saber que o funeral já havia ocorrido há mais de 150 anos. Achei o luto daquela senhora tão autêntico que sequer esclareci a condição do vizinho famoso. Despedi-me já preparado a perguntar não mais sobre Poe, mas sobre um pequeno museu por ali, que também estava sendo velado, envolto em um funeral que estava prestes a acontecer. O museu fechado, como o tampo de um caixão. Nunca mais?

Assim continuei por aquela modesta vizinhança, de pessoas simples e dignas, de casas parecidas de tijolos à vista, sem qualquer ostentação. E carregando comigo a imaginária lembrança de Poe em seus últimos dias, perambulando pelas ruas daquela cidade, em delírio, muito mais perdido do que eu estava naquela manhã... O pobre escritor murmurando coisas sobre a sua alma. E foi tentando ouvir esses sussurros que, em uma esquina qualquer, entre as casas geminadas todas semelhantes, encontrei o que buscava...

Até então, das casas de escritores que havia conseguido visitar até ali, aquela era a mais humilde de todas. Edgar Allan Poe foi o primeiro escritor norte-americano a tentar viver exclusivamente como... escritor. Todos os demais tinham outras profissões paralelas. Senti uma tremenda empatia por aquela casa, pois ela era a edificação de um sonho possível: viver da escrita. Uma construção humilde, porém, sólida. Sim, ela estava ali, mesmo que com a porta fechada. A quem caberia abrir as suas portas e janelas?


Sentei-me na soleira, relembrando as memoráveis histórias do detetive Dupin, arrepiado por histórias como "O Gato Preto”, "O Barril de Amontillado” e relembrando “A Queda da Casa de Usher”. Que perfeita vizinhança, que manhã silenciosa velando uma casa fechada com seus segredos... Mas o ponto alto de minha peregrinação à casa de Poe em Baltimore foi o grasnar... de um corvo!

Ah! Que poética experiência! Que perfeita forma de cumprir o meu intento, de tentar vislumbrar a alma deste grande escritor. E tal foi a impressão daquele grasnar e das asas negras alçando voo, contrastando com o azul do céu, que sequer cogitei procurar pelo túmulo de Poe naquela mesma cidade, para encerrar a minha peregrinação. Para o fim, bastava relembrar alguns versos de seu poema mais famoso, “O corvo”:



“Sorriu-me o triste pensamento;

Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;

E mergulhando no veludo

Da poltrona que eu mesmo ali trouxera

Achar procuro a lúgubre quimera,

A alma, o sentido, o pávido segredo

Daquelas sílabas fatais,

Entender o que quis dizer a ave do medo

Grasnando a frase: ‘Nunca mais’.”



Aquele museu estava de portas fechadas, um ninho sem corvo? Reabriria um dia ou nunca mais? Levantei-me da soleira e sem sequer tentar girar a maçaneta da porta daquela casa velada, fui embora tentando encontrar no céu o corvo que já havia partido antes de mim. E a única coisa que encontrei no ar foi a dúvida, sem qualquer vestígio de resposta:

“Nunca mais?” 


Consegue encontrar o corvo?


P.S.: Alguns anos depois de minha visita a Baltimore, o museu foi, felizmente, reaberto!




Próximo capítulo: O Grande Gatsby - F. Scott Fitzgerald

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