quarta-feira, 25 de maio de 2016

O uivo - Allen Ginsberg

Era apenas uma carona, mas o destino não era qualquer um: São Francisco. Renate ergueu a mão em despedida, o filho partiu, carregando um recém-estranho. A estrada era uma longa noite em que uma mãe acordaria no dia seguinte para seguir o rastro de Jack London e em que uma filha (irmã do homem ao volante naquele carro) se voluntariava no Afeganistão em busca de algum mundo ideal – que inexiste?
               Fred mantinha os olhos na estrada, falando amenidades. Cruzamos a ponte dos suicidas e adentramos pelos bairros em que mendigos só encontravam muros. Mas, ainda assim, Fred sorria. Em um breve lampejo, enquanto o carro cruzava a Columbus Avenue, Fred anunciou:
               — Lá está a City Lights.
               Tremi ao ouvir esse nome. Lá estava a lendária livraria e editora independente de Ferlinghetti, que publicou “O Uivo” de Allen Ginsberg, dando voz às ruas até então mudas. E o longo uivo começa assim:

“Eu vi os expoentes da minha geração, destruídos pela
loucura, morrendo de fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas ruas do bairro negro de madrugada
em busca de uma dose violenta de qualquer coisa,
hipsters com cabeça de anjo ansiando pelo antigo
contato celestial com o dínamo estrelado da
maquinaria da noite...”

               Um uivo que foi ouvido em todos os becos do mundo! E tão extasiado fiquei, que me esqueci de pedir para descer ali (não havia tempo de qualquer forma). Mas, antes, com as mãos trêmulas, ainda tirei uma foto, que pode muito bem refletir o que senti ao passar diante da City Lights. Apenas um eco de imagem, um sopro...





               Que poética maneira de conhecer a City Lights, assim como um cometa efêmero, passando de carona, sem tempo nem menos para um rápido folhear entre os volumes mortos da livraria dos beats. Rápido, rápido! Não pare! Assim deveria ser. E assim foi.
               Este é um breve relato, mas é porque eu sigo o uivo. Acabo de voltar de Ipatinga e BH, onde conheci poetas loucos (a loucura dos versos que curam a sanidade) e, daqui a alguns instantes, pegarei novamente minha bagagem de livros, para semear as pequenas poesias do dia a dia em uma ilha... sem Internet, sem sinal de celular... Ah! Desculpem-me pela pressa, mas devo pegar a estrada, rápido, rápido... As luzes da cidade irão se apagar, rumo ao mar.
               Eu ia acabar este relato aqui, mas não posso. Pois devo dizer o que mais aconteceu naquela noite, depois que o filho de Bialy me deixar na rodoviária de São Francisco. O meu ônibus prestes a zarpar rumo ao leste, onde o sol nasce. Mas antes, ainda vi a bondosa Renate, um tanto ofegante e trôpega, trazendo debaixo do braço o meu guia. O guia que eu havia esquecido em sua casa. O meu guia pessoal, com os mapas, as anotações, os endereços da América que eu mesmo compilei para a minha peregrinação.
               — Achei que fosse importante, por isso eu vim – ela sorri, recobrando o fôlego.
               Sim, era importante. Não as anotações e os mapas do meu guia, mas a presença da mãe que dirige centenas de quilômetros apenas para garantir que as ovelhas desgarradas ainda tenham algum rumo na vida. Há destruição e desgraça, há escuridão e solidão, mas há ainda também a família de Renate Bialy, a mão estendida, a graça, a luz... Não importa o quanto o mundo anda surdo nestes tempos escuros. Ainda assim é preciso uivar...
               Muito obrigado, Renate Bialy!






Próximo capítulo, dia 08/06: Por quem os sinos dobram – Ernest Hemingway.
Desculpem-me avisar assim, as postagens a partir de agora serão quinzenais, para desacelerar um pouco a peregrinação. Obrigado!



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