quarta-feira, 22 de junho de 2016

As aventuras de Huckleberry Finn - Mark Twain


               Há quase dez anos eu havia passado por aquele mesmo lugar. O meu amigo Emerson, que largou tudo para se aventurar em outro país, havia me deixado ali, para que eu fizesse a minha longa viagem de volta para casa. Muitas coisas se passaram pela minha cabeça. Em Hartford, pensei no que Hemingway disse: “Toda moderna literatura americana procede de um livro de Mark Twain, Huckleberry Finn”. Da primeira vez em que pisei em Connecticut, me lembro claramente de minha vontade de visitar Twain, enquanto eu passava os dias na casa do meu amigo. Acabei me deixando ficar no cotidiano de amizade, abandonando explorações literárias naquela ocasião. Enfim, dez anos depois, meu amigo já não morava mais por ali, então, restava visitar, finalmente, a casa de Twain.
               “As aventuras de Huckleberry Finn” é a continuação de “As aventuras de Tom Sawyer”. Tom e Huck eram amigos e cada qual é protagonista de um dos livros, com o outro como coadjuvante. Mas a questão é que o que percebo nesses livros (ou o que quero perceber) é a essência da amizade, a maior aventura de todas. Huck Finn acaba simulando a própria morte para fugir de casa e se aventurar pelo rio Mississípi na companhia de Jim, um escravo fugido. Não gosto de contar muito sobre uma obra, porque cada um deve seguir as aventuras de um livro por conta própria, com todas as interpretações certas ou erradas sobre o enredo. Se é que há tal coisa de certo ou errado. 
               Quando éramos crianças, eu e meu amigo Felipe ensaiamos fugas. Queríamos saltar no vagão de um trem que passava perto de casa, para ir pra sei lá onde. Felipe era um cara que não conhecia limites quando se tratava de “defender” ou apoiar um amigo. Passava por cima de qualquer coisa. Cometemos alguns erros, claro. Mas eram erros infantis, que, graças à Deus, nunca levaram a maiores consequências. Mas em algumas situações, sei que colocamos nossas vidas em risco. E depois dávamos risada por termos escapado...
               Enquanto caminhava por Hartford, ouvindo o eco de outono quebrando debaixo dos meus pés, eu só podia pensar em quanto éramos felizes por podermos contar um com o outro. Amizade verdadeira é algo que levamos com a gente até o fim, mesmo quando o fim do outro chega antes do nosso. A cada esquina daquela cidade desconhecida, eu me lembrava dos meus amigos. Das caronas irresponsáveis, das brincadeiras estúpidas, das mentiras que se tornavam verdades... E o que tudo isso tinha a ver com Mark Twain? Eu só estava mesmo me baseando em uma frase dele:
               “A função correta de um amigo consiste em apoiar-te quando erras. Infelizmente, a maior parte das pessoas só está do teu lado enquanto permaneces no caminho certo”.




               Quando cheguei à casa de Samuel Clemens, o verdadeiro nome de Mark Twain, fiquei admirado com o lugar. De fato, foi difícil para os Clemens se mudarem daquele lar, quando começaram a enfrentar dificuldades econômicas por conta de maus “investimentos”. Naquele lugar, as melhores obras de Mark Twain nasceram, incluindo “As aventuras de Huckleberry Finn”. E por que esse livro é tão especial para mim? Porque ao ler suas páginas reencontro o cara que não media o certo ou o errado quando olhava pra um amigo... 
               O livro chegou a ser banido pela Biblioteca de Concord, por ser um mau exemplo para os jovens. Pois bem, o que seria um mau exemplo? Foram os erros que cometi com os meus amigos que me ensinaram muito mais do que os acertos... Por exemplo, eu não tinha dinheiro (se quisesse continuar comendo até o fim da peregrinação) para pagar pelo ingresso para entrar na casa-museu. Percebi que seria possível entrar mesmo assim, pois um tipo de filmagem estava sendo preparada e um pequeno caos estava estabelecido na entrada. Poderia ter feito isso em nome dos velhos erros? Sim. Mas não o fiz. Errar uma vez por rebeldia, ingenuidade ou seja lá o que for é uma coisa. Repetir erros sistematicamente, tornando-os aceitáveis para nós mesmos, isso já é outra coisa. Muitos consideram a obra como racista, pelo jeito em que Jim é descrito, como um negro ingênuo e, por vezes, inferior. Para muitos naquela época, a horrenda escravidão era aceitável socialmente e legalmente correta. Mas só porque a “sociedade” afirma que algo é aceitável, devemos aceitar? Se as leis dizem que algo é correto está tudo bem? 
               A beleza de Huckleberry Finn consiste em mostrar que dentro de uma balsa descendo um rio, no qual os olhares da sociedade não navegam, a verdadeira amizade pode florescer, livre de qualquer julgamento do que pode vir a ser certo ou errado. 
               Sei que o meu amigo Felipe nunca iria querer visitar a casa de Twain, nem o meu amigo Emerson, que apesar de ter morado ali perto, nunca visitou a tal casa  do escritor. Cada um tinha um sonho, uma meta, um caminho correto a ser seguido. Era eu quem queria me tornar um escritor, por isso estava ali. Quando somos crianças, parece que nossos caminhos são iguais. Caminhamos juntos até que, em certo ponto, nos separamos, cada um em busca do próprio objetivo, da coisa certa a se fazer pelo caminho. Mas, mesmo quando nos lançamos ao rio da infância e nossas balsas se separam no delta da vida adulta, no fim, sempre acabamos no mesmo mar. De certa forma, ainda acredito nesse reencontro... É essa a aventura que está por vir que eu e meu amigo Felipe, que foi antes de mim, iremos seguir, a fuga em busca da verdadeira liberdade, em que certo ou errado são apenas palavras sem qualquer julgamento...
              
              

Próximo capítulo no dia 06/07: A Cabana do Pai Tomás - Harriet Beecher Stowe.

               

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