quarta-feira, 8 de junho de 2016

Por quem os sinos dobram - Ernest Hemingway


               Após várias horas de viagem, cruzando paisagens desérticas e localidades encravadas no vazio, eu já tinha perdido a noção de que estado estávamos, quando o ônibus parou em um posto de conveniência no meio do nada. Desci do ônibus para ir ao banheiro. Quando saí de lá, só encontrei o atendente atrás do balcão e ninguém mais. O ônibus havia partido.
               — Acho que você perdeu o ônibus – ele disse, um tanto assustado.
               Tentei ser prático, tentando não me importar com o fato de que a minha mochila, com todas as minhas coisas, tinha ido embora sem mim:
               — A que horas vai passar o próximo?
               — Daqui a 24 horas...
               Saí tão desolado que sequer perguntei onde estávamos. Quando olho para cima, vejo uma placa com a resposta:
               “YOU ARE NOWHERE”.



               Um trocadilho interessante, que poderia significar: “você está aqui agora” ou “você está em lugar nenhum”. Então, qual das respostas eu escolheria?
               Pouco tempo depois, o atendente alegremente me deu a notícia:
               — Eu liguei para a companhia de ônibus. Eles vão tentar entrar em contato com o motorista. Se conseguirem, talvez ele volte.
               Esperança. Quantas pessoas simpáticas eu estava encontrando em meu caminho? Que sentimento de fraternidade e...
               O ônibus voltou. O motorista abriu a porta. Antes que eu pudesse me desculpar, ele me deu uma tremenda bronca. Enquanto eu entrava, ele anunciava pelo microfone:
               — Agradeçam ao passageiro que está subindo neste instante, porque, graças a ele, não teremos mais paradas, nem para um cigarro. Quem descer do ônibus nos próximos pontos será deixado para trás. E dessa vez eu não vou voltar...
               Ouvi o início de uma vaia. E logo vieram os “agradecimentos”:
               — Se eu fosse você, seu f..., não dormiria – disse um.
               — Melhor você vigiar suas costas, China – disse outro.
               Em outra fileira, uma mulher com os dentes cerrados me mostrava o dedo do meio. Outro passou me dando um esbarrão. 
               Depois de sentir toda a simpatia de uma família na Califórnia, que não me enxergou como um estranho, mas como alguém com quem partilhariam fraternalmente uma refeição, senti o outro lado das pessoas: a antipatia e o olhar de distanciamento. O clima de hostilidade me fez refletir sobre a condição humana. Cada um daqueles que me viam como “inimigo” dentro daquele ônibus só queria fumar um cigarro a cada parada que eu detonei com o meu erro. Pedir desculpas, como eu fiz mais de uma vez, não lhes daria a nicotina necessária em seus pulmões para apaziguar toda a ansiedade de uma desconfortável e longa viagem, em que pessoas são obrigadas a conviver, em um pequeno espaço, com outras para quem não dão a mínima, enquanto cruzam a vastidão de paisagens que tampouco se importam com a solidão que cada um carrega dentro daquele ônibus. Se ao menos tivéssemos a companhia um do outro...
               Mesmo com as ameças, acabei adormecendo e acordando em algum lugar. Não me lembro onde, mas só sei que todos estavam cansados demais para continuarem a me condenar. Algum tempo depois, eu chegava a Chicago, de onde rapidamente tomei um trem suburbano para a vila de Oak Park, pacata localidade onde nasceu um dos maiores escritores da América: Ernest Hemingway.
               Enquanto caminhava por Oak Park, relembrei a primeira vez em que li Hemingway, em um empoeirado volume de “O velho e o mar”, emprestado da pequena biblioteca de Caraguatatuba, cidade litorânea. Eu estava tomando conta da casa da minha mãe e do meu padrasto, que estavam no exterior. Naquela época eu ainda não tinha publicado nenhum livro. Tentava escrever, mas não conseguia. Então, eu apenas lia, o mais próximo que eu podia chegar da Literatura, que eu havia escolhido como propósito de vida, sem saber como um dia eu poderia tornar essa escolha uma realidade. Devorei o livro. Quando o fui devolver à biblioteca, com as páginas sendo folheadas pelo vento na cestinha da bicicleta enquanto eu pedalava pela orla, fiquei imaginando o que tudo aquilo que estava na minha cesta significava. Quem eu era naquele momento? Eu era o velho Santiago, pescador desacreditado por quase todos, mas que se lança ao mar mesmo assim? Era o jovem Manolin, que acreditava ainda no velho pescador? Era o peixe devorado? O tubarão?
               Foi um livro que me marcou muito e por isso eu queria compreender tudo o que ele significava. Até tentei pesquisar sobre a obra, até me deparar com a resposta do próprio Hemingway:
               “Não há qualquer simbolismo. O mar é o mar. O velho é um velho. O garoto é um garoto e o peixe é um peixe. O tubarão é como todos os tubarões, nem melhor nem pior. Todo o simbolismo que as pessoas enxergam é merda. O que vai além é o que você vê além...”
               Muitos anos depois, ao ler “Por quem os sinos dobram”, eu já não me fiava em símbolos, nem buscava significados ocultos em suas obras. E isso nem seria necessário. Tudo é tão real em Hemingway que nos sentimos mais dentro da “realidade” do livro do que fora dele. E isso não é nem um pouco alentador em certas linhas...
               E foi pensando em minha relação com esse escritor, que finalmente me deparei com uma placa cravada no chão, que atestava que aquele era o “local de nascimento de Ernest Hemingway, no dia 21 de julho de 1899”. Era muito cedo, e a casa que testemunhou as primeiras lágrimas de Hemingway ainda dormia. Sentei-me na varanda úmida, com as folhas molhadas de frio no quintal. Então, brinquei de folhear aquelas folhas, como se cada uma delas pudesse me contar uma história. Em que ponto da vida de Hemingway, que havia nascido ali, voltou-se para a consciência da morte? Será que eu estava indo muito rápido na biografia deste escritor?




               Em “Por quem os sinos dobram” acompanhamos a missão de Robert Jordan, encarregado de explodir uma ponte durante a Guerra Civil Espanhola. Para isso, ele precisa contar com a ajuda de várias pessoas, com quem convive e absorve novas formas de enxergar o mundo. Hemingway presenciou essa guerra na vida real, bem como a guerra entre gregos e turcos, caçou barcos alemães na costa de Cuba, testemunhou o desembarque na Normandia no Dia D e chegou a matar um soldado nazista... Por fim, se matou aos 61 anos...
               De leste a oeste, em vários cantos da América, vi monumentos e cruzes em memória a alguém que morreu em alguma guerra, seja a civil americana ou em terras distantes, como em Bagdá... Em uma parada durante a longa viagem a Chicago, na pequena localidade de Ogalalla, havia uma placa em memória a um sargento que morreu no dia 04 de novembro de 2005, no Iraque... Ao lado, a silhueta de um caubói de cabeça baixa. Provavelmente, em Bagdá talvez existam placas como aquela também, só que em árabe...
               Ao ler “Por quem os sinos dobram” percebo, sem qualquer simbologia, que há heróis e vilões dos dois lados de qualquer guerra. Por que não podemos aceitar que é muito melhor viver em um mundo em que todos somos iguais, ao invés de estabelecermos “diferenças” bélicas? Fico, assim, com as palavras do poeta John Donne, cujo verso inspirou o título da obra-prima de Hemingway:

“A morte de cada homem diminui-me, porque sou parte da humanidade. Portanto, nunca procure saber por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.

               Antes de partir de Oak Park, uma fina chuva começou a cair. Vi uma mulher segurando a mão de um garoto, ambos protegidos por um guarda-chuva. Enquanto eles se distanciavam, fiquei imaginando em que momento da vida largamos as mãos de nossas mães e corremos para longe de seu imenso guarda-chuva protetor, para nos encharcarmos nas frias lágrimas de alguma guerra...


Próximo capítulo no dia 22/06: As aventuras de Huckleberry Finn – Mark Twain.



              



               

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