quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Folhas de Relva - Walt Whitman

          Ainda em Nova Iorque, quando os ponteiros se aproximavam da meia-noite, tive que aceitar o dia da partida. O que eu poderia fazer se ainda tinha tantos escritores que desejava visitar? Queria correr como um louco para vislumbrar o apartamento comunitário em que Burroughs e Allen Ginsberg dividiram na 419 West 115th St., ou o apartamento que Truman Capote comprou com os direitos autorais que recebeu pelo seu livro “A sangue frio”, na 860-870 U. N. Plaza. Quem sabe um dos vários endereços de E. E. Cummings, ou o de John Dos Passos na 11 Bank Street ou do outro John, Steinbeck, na 38 Gramercy Park N. (após ter abandonado a universidade em busca de seu sonho de se tornar um escritor). Quem sabe espiar o lugar onde Arthur Miller viveu com Marilyn Monroe na 444 East 57th St. Poderia ir para o famoso Chelsea Hotel na 222 West 23rd onde tantos escritores se hospedaram (bem como astros como Bob Dylan, Janis Joplin, Leonard Cohen, Jimi Hendrix, Sid Vicious e Nancy). Mas, se no início da minha viagem eu já não tinha muito dinheiro, agora, no fim, muito menos teria para me hospedar em um lugar assim. Ah, e também queria revisitar Ernest Hemingway, Edgar Allan Poe em um dos vários endereços (em todos eles, alega-se que ele escreveu “O corvo”),  Mark Twain... Por ora, eu havia passado diante do apartamento de J. D. Salinger na 300 East 57th Street, onde morou antes de se refugiar na pequenina Cornish. Queria seguir os passos de Holden Caulfied... Tantos fizeram de Nova Iorque o seu chão... 


          Eu já estava diante de uma construção de tijolos vermelhos na 307 West 11th, onde Kerouac revisou “On the Road” e escreveu parte de “Anjos da Desolação” no apartamento de sua namorada Helen Weaver. Naquele instante, eu já estava um tanto quanto cansado... E angustiado. Afinal, como eu poderia visitar tantos lugares em apenas uma madrugada? Pior, já estava em meu último dia na América e eu ainda não havia visitado a cidade de Camden, ainda não havia visitado o único museu que eu poderia frequentar sem problema, pois era um museu gratuito: a casa de Walt Whitman. Esta deveria ser a minha primeira visita na América, de acordo com o meu plano original (que mudou várias vezes na estrada), o local mais próximo de onde eu havia desembarcado no país. Mas, teria eu ainda tempo de encontrar Walt Whitman?


          Ali, desamparado pelos minutos que escoavam pelo ralo do peito, encontrei, jogado na calçada, um par de botas. Aquela visão me acalmou e fez brotar no meu rosto, como folhas de relva no orvalho da manhã, um sorriso. Sim, a simples e miserável imagem de um surrado par de botas abandonado teve esse poder sobre mim.
          Ali estava Walt Whitman...
          Pois para quem leu Folhas de Relva, a maior peça poética da América, pode bem entender o que digo. Na “Canção de mim mesmo”, Whitman começa declarando:

“Eu celebro a mim mesmo,
E o que eu assumo você vai assumir,
Pois cada átomo que pertence a mim pertence a você.

Vadio e convido minha alma,
Me deito e vadio à vontade... observando uma lâmina de grama no verão”

        A partir daí, com os versos sem qualquer métrica, como as folhas de grama assim o são, sem medida, irregulares e livres, nos vemos absorvidos pelo chão da América, de todos os cantos, pois ali mesmo em Nova Iorque Walt Whitman caminhou e deixou suas pegadas. E suas sementes se estenderam pelo gramado do Central Park, pelas fissuras de cada beco ou larga avenida, estendendo-se infinitamente até o oeste, o norte, o sul... Sem sequer me dar conta, a cada cidade americana que visitava, eu tinha visitado também a face de Whitman, pois nenhum outro foi capaz de escrever a alma da América como ele logrou realizar durante seus longos anos, muitos dos quais dedicando-se a cultivar a sua maior obra. E assim, desde a primeira edição em 1855 da misteriosa e lendária “Folhas de Relva”, sem ter revelado o nome do autor na capa, apenas com a enigmática figura de si mesmo, homem comum, prostrado diante dos ventos da mudança – que ele mesmo soprou, vieram as outras edições e suas folhas cresceram: 1856, 1860, 1867 – quando primeiro se pôde ouvir os versos: “O Captain! My Captain” – seguindo pelas edições de 1876, 1881, 1891 – que dizem ter sido a última... Mas não. Pois as folhas de relva continuam a crescer, não apenas nas vastas pradarias da América do Norte, mas também em todos os continentes nos quais as folhas vivas persistem.
          Pois, nos versos finais de “Canção de mim mesmo”, Walt nos revela:

“Me entrego à terra para crescer da relva que amo,
Se me quiser de novo me procure sob a sola de suas botas

Vai ser difícil você saber quem sou ou o que estou querendo dizer,
Mas mesmo assim vou dar saúde,
Vou filtrar e dar fibra a seu sangue.

Não me cruzando na primeira não desista,
Não me vendo num lugar procure em outro
Em algum lugar eu paro e espero você”.






Em breve, na primavera, o lançamento do livro virtual de poesia "A peregrinação das folhas caídas".

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