Ainda em Nova Iorque, quando os ponteiros se aproximavam da meia-noite, tive que aceitar o dia da partida. O que eu poderia fazer
se ainda tinha tantos escritores que desejava visitar? Queria correr como um
louco para vislumbrar o apartamento comunitário
em que Burroughs e Allen Ginsberg dividiram na 419 West 115th St., ou o
apartamento que Truman Capote comprou com os direitos autorais que recebeu pelo
seu livro “A sangue frio”, na 860-870 U. N. Plaza. Quem sabe um dos vários
endereços de E. E. Cummings, ou o de John Dos Passos na 11 Bank Street ou do
outro John, Steinbeck, na 38 Gramercy Park N. (após ter abandonado a
universidade em busca de seu sonho de se tornar um escritor). Quem sabe espiar
o lugar onde Arthur Miller viveu com Marilyn Monroe na 444 East 57th St.
Poderia ir para o famoso Chelsea Hotel na 222 West 23rd onde tantos escritores
se hospedaram (bem como astros como Bob Dylan, Janis Joplin, Leonard Cohen,
Jimi Hendrix, Sid Vicious e Nancy). Mas, se no início da minha viagem eu já não
tinha muito dinheiro, agora, no fim, muito menos teria para me hospedar em um
lugar assim. Ah, e também queria revisitar Ernest Hemingway, Edgar Allan Poe em
um dos vários endereços (em todos eles, alega-se que ele escreveu “O corvo”), Mark Twain... Por ora, eu havia passado diante do
apartamento de J. D. Salinger na 300 East 57th Street, onde morou antes de se refugiar na pequenina Cornish. Queria seguir os passos de Holden
Caulfied... Tantos fizeram de Nova Iorque o seu chão...
Eu já estava diante de uma construção de tijolos vermelhos na 307
West 11th, onde Kerouac revisou “On the Road” e escreveu parte de “Anjos da
Desolação” no apartamento de sua namorada Helen Weaver. Naquele instante, eu já
estava um tanto quanto cansado... E angustiado. Afinal, como eu poderia visitar
tantos lugares em apenas uma madrugada? Pior, já estava em meu último dia na
América e eu ainda não havia visitado a cidade de Camden, ainda não havia
visitado o único museu que eu poderia frequentar sem problema, pois era um
museu gratuito: a casa de Walt Whitman. Esta deveria ser a minha primeira
visita na América, de acordo com o meu plano original (que mudou várias vezes na estrada), o local mais próximo de onde eu
havia desembarcado no país. Mas, teria eu ainda tempo de encontrar Walt Whitman?
Ali, desamparado pelos minutos que escoavam pelo ralo do
peito, encontrei, jogado na calçada, um par de botas. Aquela visão me acalmou e
fez brotar no meu rosto, como folhas de relva no orvalho da manhã, um sorriso. Sim,
a simples e miserável imagem de um surrado par de botas abandonado teve esse
poder sobre mim.
Ali estava Walt Whitman...
Pois para quem leu Folhas de Relva, a maior peça poética da
América, pode bem entender o que digo. Na “Canção de mim mesmo”, Whitman começa
declarando:
“Eu celebro a mim mesmo,
E o que eu assumo você vai
assumir,
Pois cada átomo que pertence
a mim pertence a você.
Vadio e convido minha alma,
Me deito e vadio à
vontade... observando uma lâmina de grama no verão”
A partir daí, com os versos sem qualquer métrica, como as folhas
de grama assim o são, sem medida, irregulares e livres, nos vemos absorvidos
pelo chão da América, de todos os cantos, pois ali mesmo em Nova Iorque Walt Whitman
caminhou e deixou suas pegadas. E suas sementes se estenderam pelo gramado do
Central Park, pelas fissuras de cada beco ou larga avenida, estendendo-se infinitamente
até o oeste, o norte, o sul... Sem sequer me dar conta, a cada cidade americana
que visitava, eu tinha visitado também a face de Whitman, pois nenhum outro foi
capaz de escrever a alma da América como ele logrou realizar durante seus
longos anos, muitos dos quais dedicando-se a cultivar a sua maior obra. E
assim, desde a primeira edição em 1855 da misteriosa e lendária “Folhas de
Relva”, sem ter revelado o nome do autor na capa, apenas com a enigmática
figura de si mesmo, homem comum, prostrado diante dos ventos da mudança – que ele
mesmo soprou, vieram as outras edições e suas folhas cresceram: 1856, 1860,
1867 – quando primeiro se pôde ouvir os versos: “O Captain! My Captain” –
seguindo pelas edições de 1876, 1881, 1891 – que dizem ter sido a última... Mas
não. Pois as folhas de relva continuam a crescer, não apenas nas vastas
pradarias da América do Norte, mas também em todos os continentes nos quais as folhas vivas persistem.
Pois, nos versos finais de “Canção de mim mesmo”, Walt nos
revela:
“Me entrego à terra para
crescer da relva que amo,
Se me quiser de novo me procure
sob a sola de suas botas
Vai ser difícil você saber
quem sou ou o que estou querendo dizer,
Mas mesmo assim vou dar
saúde,
Vou filtrar e dar fibra a
seu sangue.
Não me cruzando na primeira
não desista,
Não me vendo num lugar
procure em outro
Em algum lugar eu paro e
espero você”.
Em breve, na primavera, o lançamento do livro virtual de poesia "A peregrinação das folhas caídas".
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